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17 ABR 2023
OPINIÃO | "A trança", por Maria João Carvalho
Por Jornal Abarca

Tia Paulina jantava com a família, uma vez por mês, ao Domingo. Não cozinhava. Só sabia fazer arroz de forno, aprendido com o Albano motorista, como quem prepara cocktails molotov, em madrugadas azuis na cozinha de Paris, depois de noitadas com champanhe, música e até absurdos inconfessáveis e esquecidos. Nos dias dourados de Paris, Albano levava a tia aonde a imaginação dela desejava, Florença, Veneza, a arte e a loucura de pequena vertigem a preencher-lhe os dias. Movimentava-se agora com vagar e algum esforço, a bengala, a silhueta em cambo, a petulância da memória.

Enquanto ocupava a cabeceira da mesa, a algazarra dos sobrinhos: a tia cortou a trança!

Cortara o cabelo quase com rancor, diziam. Não fora por nenhuma razão subtil, mas porque estava quebradiço. Só lhes assistia razão por ter sido a primeira vez que o corte fora tão inusitado ­­­─ para salvar o que resta e depois volta a trança. Haja coragem. Mas já agora, a Marina podia trazer-me um dos seus ganchos, para prender esta madeixa teimosa…  e o xaile que está numa cadeira, no meu quarto, parece-me que arrefeceu…

─ Não está frio, tia

─ Para os meus ossos, que são de quase um século? Claro que está.

─ A tia devia fazer análises.

─ Já cá faltavas tu e a tua sabedoria. Deixa de ser tonta, Luísa. Não tomo drogas. E tenho pavor de agulhas. O teu pai não veio jantar?

A tia sabia bem que o irmão estava quase cego e as viagens nocturnas, porque o negrume atravessado pelos faróis com que se cruzavam o irritavam.

─ Mas, sendo assim, passamos a almoçar em vez de jantar, e o Pedro pode estar presente.

Responderam-lhe que era uma boa ideia, mas que eles iam de férias no mês seguinte.

─ De férias? O meu irmão vai de férias? Mas férias de quê? Vai a passeio. Não é pecado nem delito ir a passeio. Desde que passámos a ser todos iguais, temos de arranjar desculpas tolas para as coisas mais simples. Um cidadão com 91 anos tem de inventar que vai de férias para viajar sem culpa, para sentir outros ares, ouvir outras línguas, que nem gozar a paisagem já pode. Ora abóbora! Teu pai vai para onde?

Que ia para a Suíça.

A tia fixou o olhar trocista em Isabel, murmurou que iam mudar as contas do dinheiro, agora que os bancos estavam a falir, mas chegou Marina com uma mola para controlar a madeixa rebelde e Carlos rebentando a rir:

─ Tia, Tia Paulina, se não soubesse que estava no seu quarto, julgava que era no quarto da empregada dos meus pais antes do 25 de Abril.

E ria, ria.

─ Tem lá o poster das mãos sobre o teclado e… ó tia, nem acredito… quatro fotos de artistas. A empregada lá de casa tinha o António Calvário e o Tony de Matos.

─ A criada dos teus pais tinha esses artistas e muito bem, eu tenho os meus heróis, que ando a estudar. Não reconheceste nenhum?

─ Che Guevara.

─ Bravo!

─ Não sei quem é o velhinho de barretinho e poncho e os olhos mais brilhantes e inteligentes que já vi, nem os actores. Lamento.

A Tia achava que tinham um traço comum e era isso que ela andava a informar-se, mas para ele, Carlos Almeida, a tia gostava das belas figuras masculinas, isso sim. Uma verdade e uma sombra, como um pecado ou assim.

─ Quando me quiser falar do pianista… era um grande favor. E não se desculpe, que eu tenho a certeza de que a tia sabe muito sobre ele.

─ Mas tu vais concorrer às eleições do próximo Outubro, não é? Então, ganha, vê se ficas na Cultura e poderás celebrar o tal centenário, que ele só faria 100 anos daqui a dois… Conversamos, conversamos.

 

 

 

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