Durante muitos anos o meu Pai foi nómada. Até aos meus 14/15 anos cresci, na melhor das hipóteses, com um “pai de fim de semana”.
Pois bem, este pai “part-time”, numa das estadias em Lisboa esteve no Quartel da Graça. E que graça aquelas vistas, para não falar da pastelaria ali mesmo ao lado onde eu e minha mãe esperávamos. Sim, havia sempre uma pastelaria à minha espera com o meu lanche preferido: um queque e um quarto de leite Vigor fresquinho. Nem tudo era mau e nas minhas férias escolares as casas dos tios esperavam-nos e durante a semana mudávamo-nos para a capital. Adorava!
Pois bem, era frequente descermos da Graça até à baixa a pé em passeio. Ainda hoje se fechar os olhos lembro a chegada à igreja de São Domingues através de uma calçada íngreme. Depois andávamos por ali. Este período coincidiu com a minha escola primária, 3ª/4ªclasses. Recordo, também, o Largo do Martim Moniz aos sábados com a sua feira e a chamada de atenção do meu Pai “cuidado, isto aqui é só gandulagem”.
A minha mãe não gostava deste Largo e entretinha-se nas montras da Rua Augusta e suas paralelas. Um dia, um dos gandulos abordou o meu Pai e diz “oh amigo, olhe aqui” e mostra-lhe uma arma. Ao que meu Pai, responde “oh amigo, eu também vendo”. Desandou sem pestanejar.
Do Martim Moniz à Rua do BenFormoso são dois passos e naquela época era uma rua tranquila com drogarias, ferragens, leitarias, cafés e gente modesta. Alguma má fama que quase sempre de raiz histórica. Mas era castiça. A Lisboa castiça que já não existe.
Há já uns quantos anos dizem que é a rua mais multicultural de Lisboa. Ali coabitam muçulmanos, hindus, católicos e um colchão para dormir chega aos 150.00 euros.
Aproxima-se o Verão com as suas temperaturas altas. Já esquecemos as estufas de Odemira mas o trabalho à jorna ressuscitou. Inacreditável! É uma prática ilegal paralela à escravatura. Entre outros locais, desenrola-se no centro de Lisboa, nas ditas estufas, no nosso Ribatejo – que tantos se orgulham.
A riqueza cultural na Rua do BenFormoso exaltada esta semana, mais uma vez, como uma mais valia, envergonha-nos enquanto país de acolhimento. Os pardieiros onde esta pobre gente dorme a troco de um colchão, por vezes quente, porque se revezam, é humilhante e degradante. Onde está o princípio da dignidade humana plasmado na nossa constituição?
Coniventes com os pequenos poderes – porque não controlamos - a vida destes seres é manietada desde o país de origem onde lhe cobram cerca de 3/4 mil dólares pela viagem. Aqui inicia-se o limbo legal.
O BenFormoso é o espelho de um país que neste caso é o nosso.
Sim, as cores das suas culturas são vibrantes.
Sim, os cheiros das suas comidas são viciantes.
Não, as suas vidas não são entusiasmantes.
Entregues a si, só alguma reportagem dos media os pode salvar.
Porque passei no BenFormoso recentemente e de formoso só o nome, alivia-me um pouco a consciência falar sobre gente que não tem voz. Desta vez, nem as cores nem os cheiros que tanto gostava me cativaram. É mau demais o que os nossos olhos vêem a meio de uma tarde ensolarada.