Regressaram os meus milharóses. Voltaram como dádiva cíclica a encher o ar de cochichos com os seus cantos e a espelhar reflexos de luz nos céus com os seus maravilhosos voos.
A primavera aí está. Prosérpina (ou Deméter, deusa das colheitas) volta a ser feliz, pois a sua filha regressa do Hades, maravilhando o coração da sua mãe que, de tão feliz, espalha alegria e vida pela natureza. Trata-se de um dos mitos clássicos mais bonitos e afetuosos para explicar a renovação nesta estação do ano. A perda, a saudade, o regresso e a alegria no amor entre uma mãe e uma filha. Desde criança que é um dos meus preferidos, chamou-me a atenção assim que o li num sedutor livro ilustrado da antiga biblioteca municipal de Torres Novas, onde, sempre que tinha trabalhos ou tempo livre, acedia. Na iminência de um afastamento mais prolongado com a minha filha-alma, cada vez o entendo melhor.
No passado dia 28 de março, ocorreu num Centro Muçulmano de Lisboa (frequentado pela minoria ismaelita que tem sido alvo de atentados no Afeganistão e Paquistão) o ataque que deu origem a dezenas de feridos por esfaqueamento e ao homicídio de duas mulheres que nele trabalhavam. Apesar da gravidade da situação, infelizmente, nada de extraordinário se passou, pois, em Portugal, como é sabido, ocorrem com certa regularidade homicídios de mulheres, às mãos de homens que, na maior parte dos casos, são seus maridos ou companheiros, como se estivesse entranhado, sendo um hábito a perpetuar. Horrível, lamentável, condenável, mas trata-se de um facto.
Pergunto-me que ação tão vil terão estas duas mulheres praticado ao ponto de merecerem julgamento sumário, com tal sentença e castigo imediato, sendo a pena de morte por agressão à facada.
Contudo, o insólito deste caso apresenta-se em dois aspetos. Primeiro, foi chamado o 112, pois, evidentemente, quem o não fizesse incorreria em crime de homicídio por não prestar auxílio. Desconheço o tempo que demorou a ser acionado este meio de socorro e a prontidão ou ausência dela a concretizar-se, uma vez que as duas vítimas foram mortais. As notícias, que eu tenha conhecimento, não o divulgaram, apenas se apressaram a tranquilizar o público que não se tratou de um ato terrorista, mas de um ato isolado, e que este homem afegão tinha a seu cargo 3 filhos, pois perdera a sua mulher num centro de migrantes noutro país. Acionaram o 112, não obstante, foi este é que ativou a PSP, como se de crime não se tratasse para as pessoas do dito centro.
Em segundo lugar, o insólito, e sobretudo caricato, foi quando o primeiro-ministro rapidamente deu as condolências não aos familiares das duas vítimas, mas ao tal Centro Islamita. Ora, como o Centro são as pessoas que nele se encontram, significa isto que as condolências foram dadas, não às famílias das vítimas, mas aos mesmos cidadãos que certamente não avaliaram o caso suficientemente digno e grave ao ponto de ser merecedor de averiguação pela polícia e de castigo inerente. A sordidez da política ou a vileza dos caráteres?
Teremos, seguramente, entre outros familiares, duas mães que choram a perda das suas respetivas filhas. Estas abruptamente ceifadas para o reino dos mortos e, desta vez, sem a possível intervenção do grande Zeus que lhes permita o regresso ao mundo dos vivos pelo menos durante uma metade do ano.