Pedro acendeu com dificuldade a cigarrilha, enquanto o genro lhe estendia o copo de Martini.
─ Não esqueceste o Martini para a minha irmã, pois não?
─ O meu sogro tem de concordar comigo, connosco, que a família sempre mimou demasiado a Tia Paulina. Ela sempre fez o que quis e como quis.
A família não mimara Paulina mais do que os outros membros. Pedro não concordava.
─ A minha mãe era inglesa, mais propriamente galesa, e não era de demonstrar afectos muito abertamente. Aliás, se não fosse a prima Marinella ter vindo para nossa casa durante a guerra, a Paulina ainda hoje vestia saia e casaco como uma mulher polícia. A mãe não tinha uma ponta de gosto, sensibilidade, sei lá, para escolher a roupa da minha irmã. Mas a Marinella trouxe as túnicas gregas, uns sapatinhos leves, uns xailes, umas écharpes voluptuosas, transformou a Paulina numa rapariguinha feliz.
─ Nunca ouvi falar nessa prima ─ afirmou Carlos entre o espanto e a indignação.
Parecia que lhe escapava muita coisa sobre a família e que, de cada vez que surgia um assunto banal, se abria um segredo fantástico.
Pedro estranhava a repentina decisão da irmã em abandonar o retiro em casa da sobrinha após a viuvez. Se bem que Paulina não cedeu nunca a ordens, decidia no momento e nesse mesmo instante materializava as decisões apesar dos desgostos, decepções e reacções.
─ Bom… Isso foi porque eu levei a Tia Paulina ao banco, a pedido da Luísa, claro, para a Tia juntar os nossos nomes à sua conta. A Tia recebe a pensão e na idade em que está é mais seguro termos acesso nós, os sobrinhos com quem estava a viver
─ Mas a Paulina foi para vossa casa por insistência da Luísa, eu sei que vos deu sempre dinheiro e nem precisava de ir viver convosco. Sempre manteve a sua própria casa, com a mesma governanta de décadas…
─ Mas a Tia não concordou, nem saiu do carro e ordenou-me, de mau humor, que a levasse para a sua casa.
Pedro percebeu tudo, mas não teve tempo de responder, Paulina chegava.
O abraço foi difícil, Paulina apoiada na bengala, Pedro quase cego.
─ Viemos para o almoço de Páscoa, como pediu.
─ De Páscoa? Mas o mano sabe que eu não comemoro esse tipo de incidentes, acidentes, datas de religiões… Não sabe? E depois comemorar a tortura de um cidadão que termina numa cruz, se dizia rei e lamentava que o pai o abandonara, não é coisa que se comemore. Sabe muito bem que não acredito em deuses. Os deuses, Pedro, foram criados pelos homens quando se decepcionaram com os políticos, e os políticos aproveitaram e exploraram até hoje a ignorância do povo que também até hoje mantém a desilusão.
Paulina estava bem de saúde e de juízo, como se comprovava pelo belo discurso que vinha desfiando há anos, na sua voz clara mas firme e doce. Sim, firme e doce.
─ O Carlos está a iniciar-se na política, o mano já sabe?
─ Quem me pode ajudar é a Tia Paulina, mas não me diz nada sobre esse António pianista.
─ O António? Mas olha Carlos, aí tens, o António foi a pessoa que mais mimou a Paulina. Se de facto a Paulina teve mimo foi do António. Mimo e paixões. O António trouxe para ela a paixão pelo Garibaldi. É verdade. Até uma fotografia, que ela ainda terá, de Garibaldi com um barretinho e o poncho que ele jamais deixou de usar e veio com ele do Brasil.
Paulina correra Itália para visitar os monumentos a Garibaldi, estudara história e quando o marido esteve na embaixada, no Brasil, visitou Porto Alegre e os locais onde se assinalou a passagem do guerrilheiro.
Carlos estava esmagado com as revelações. Aquele velhinho na moldura sobre a cómoda de Tia Paulina… Que disparate mais rematado. E o António pianista a mimar a velhota…
Que mais estariam a guardar aqueles dois velhos quase na tumba. Rijos e seguros nos seus segredos e magias.