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19 JUN 2023
OPINIÃO | "Baile Interseccionista", por Anabela Ferreira
Por Jornal Abarca

Viver na aldeia já não é viver na aldeia.

Passo a explicar: além de ser para muitas pessoas dormitório, parte do encanto da vida numa aldeia eram os eventos que ocorriam e, apesar de poderem ser mais ou menos do nosso agrado, existiam e possibilitavam o encontro de todos, de quem se gostava mais, de quem nem se gostava tanto assim, talvez de quem nem se gostava, mas, enfim, uma tela de amizades rica e agradável sempre.

Com a mudança do estilo de vida, o diminuir da população e, mais recentemente, com a pandemia, a vida comunitária praticamente ficou extinta. Felizmente, talvez até graças ao recolher obrigatório imposto, a sede de convívio aumentou e, qual fénix renascida, eis que a vida comunitária ressurgiu também.

De facto, têm ocorrido várias iniciativas culturais ou de simples convívio que vêm comprovar este ressurgimento bem-vindo.

Ora, uma sexta-feira destas, por uma daquelas circunstâncias raras e anómalas que mais parecem um alinhamento de astros, numa ida raríssima à cabeleireira em Torres Novas que, choquem-se as senhoras que visitam a sua semanalmente, ou até, eventualmente, com mais frequência, para mim ocorre em média bianualmente e já é um sacrifício repleto de tormento, com a sensação de perda de uma preciosa tarde de trabalho e ou de lazer, soube que na minha aldeia, na noite do dia seguinte, haveria um baile com o grupo musical Xarepa. Espanto imediato. Pela raridade do evento e pelo desconhecimento em absoluto do mesmo. Atualmente, pelos vistos, parte-se do princípio de que as pessoas vivem no Facebook e que já não é necessário publicitar nada. Além disso, talvez se confie nos ecos da mensagem passada de boca em boca. Ora, vou pontualmente àquela rede social e nela tenho amizades limitadas, que, mea culpa, mesmo assim algumas nem saberei dizer quem serão, e, quanto ao eco, chega aqui ao monte nos arrabaldes da localidade só quando chega. De modo que, após a surpresa, surgiu a determinação. Tinha de ir ver aquilo que não vivenciava há talvez mais de três décadas. Assim foi.

Bem, posso referir que foi uma experiência interseccionista. Suponho que seja recomendável colocar aqui um parêntesis para explicar a alguns de forma básica e elementar o interseccionismo. Tratou-se de uma escola que influenciou modernistas e que viria a passar em Fernando Pessoa de movimento literário a tendência do processo criativo e consistia na interseção de perceções e sensações. Neste temos como obra-prima “Chuva Oblíqua”.

Estávamos então no presente, onde o grupo tocava êxitos musicais de há décadas atrás e, maná dos deuses, com um nível de som que tornava possível permanecer no local sem dores nos tímpanos. Músicas nostálgicas, umas melhores do que outras, de tempos idos. Quanto às pessoas, reviram-se amizades que foi o mais importante e, na interseção do presente com o passado, num local que tendo sofrido obras há anos, era o mesmo, mas diferente, desapareceram os saudosos camarotes, eis que sou cumprimentada por duas senhoras perfeitas desconhecidas. Tratava-se de duas irmãs que fizeram parte da vida da aldeia na minha infância e que, agora, mais velhas do que eu, não reconheci, depois de décadas de ausência. Penso que elas terão tido informadoras que as elucidaram da minha identidade, pois nem eu me reconheço nas fotos de há vinte anos. Eu a elas, nada. Nem um palpite… Seriam perfeitas desconhecidas, até porque várias pessoas eram de fora da aldeia ou talvez eu já não as reconhecesse… estranheza absoluta…

Contudo, uma amiga mútua esclareceu “Se calhar, já não te lembras, foram embora da aldeia eras criança. São a Gracinda e a irmã mais velha, a Cristina”. Fez-se luz. Claro que lembrava! A mais nova pertencia à geração a seguir à minha que, quando eu fugia à minha mãe com quatro anos para ir para a escola primária, que era mesmo ali ao lado, me levava para dentro da sala de aula depois do intervalo. Porque gostavam de mim, porque eu gostava da companhia dos mais velhos e de aprender com eles (sempre fui assim), porque, talvez sobretudo por isso, a professora, na época uma regente que tinha uma régua grossa colada à mão direita (passámos do oito ao oitenta), nunca lhes aplicava castigos quando eu lá estava nas aulas, possivelmente para não me aterrorizar. Eu entrava, pela mão deles, gostava e cumprimentava a docente que parecia uma tia bonacheirona de idade avançada e cabelo vermelho, era festejada pela professora pelo gosto que demonstrava em assistir às suas aulas, dava-me um papel e um lápis e as respetivas tarefas e ficava encantada naquele silêncio ordenado a aprender os números e as letras até a minha mãe vir, inicialmente, assustada pelo meu desaparecimento, depois, nas vezes seguintes, já apenas apreensiva pela minha fuga, desculpando-se e retirando-me daquele convívio tão salutar e educativo. “Com a Belinha na sala não havia reguadas…” ouvia eu sussurrar ao sair…

Como sussurro, mas irado, passou por todos que a Associação Musical, para poder realizar aquele evento, teve de pagar à Câmara Municipal de Torres Novas a quantia de 200 euros… isso provavelmente foi o montante de lucro que não se teria conseguido apurar finda a noite e a labuta de muitos voluntários. Ora aí está, senhores políticos, a ser verdade, um belo incentivo à morte das aldeias e à tão apregoada demagogia da dinamização do interior. Que vergonha! Sei que há incentivos monetários para as coletividades, mas tão complicados e burocráticos que acredito que qualquer voluntário com vida própria se demova de os solicitar. Deixo estas duas pistas.

Tocou então a canção “L’italiano” e a memória disparou para décadas atrás com o meu saudoso tio Lúcio, emigrante em França, impossibilitado pela doença de regressar ao sol como as andorinhas, ainda jovem, na época, a cantar e a comer uma sardinha assada.

Tempos idos, continuamente sobrepostos com a realidade que estava a vivenciar. Momentos agradáveis uns e outros, não obstante bem diferentes. Dor dos ausentes…

Entretanto, fez-se meia-noite e, como qualquer gata borralheira que se preze, estava na hora de abandonar o baile. Tudo correu bem. Por precaução desloquei-me de carro e calcei botas. Felizmente, não houve lugar a perda do sapato.

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