Quando há uns bons séculos me cabia ficar de plantão nas defesas oficiosas, a minha rotina organizada era ponto de honra. Como era fácil conseguir um sábado ou domingo (ninguém queria sair dos afagos e pantufas domésticas), depois do almoço trazia folhas de papel selado, um bloco de notas, o Código Penal e de Processo Penal, um termos de café, ver se tinha cigarros que chegassem (ainda que resignado a que fossem da Marca Abreu - fumas tu e pago eu) e pés a caminho de uma esquadra de polícia. Já me conheciam, mas as de Santos-o-Velho, Mouraria e Alfama eram as preferidas pela natureza da arraia-mais-que-miúda que aparecia e sem cobrar bilhete. Ao fim da tarde, aguentava umas horitas de espera, ouvia o relato de futebol no rádio da esquadra, trocava comentários com os guardas (gaita, eram todos do Benfica…), não iria faltar muito. E não falhava – lá se ia lavrar mais um Termo de Ocorrência, apurar em 1.ª mão, o suco da barbatana de zaragatas, barafundas, asneiras ancestrais, algazarras de bairro, o que ainda me desperta simpatia aberta neste meu armazém de antiguidades de memórias. Nem era preciso o chefe da esquadra perguntar o que se passara – os guardas da escolta faziam o resumo. E depois de nomes, bilhetes de identidade, estado civil, profissão e moradas (nada de modernices de números de contribuinte), a frase martelada à máquina (…disse nada”) pelo guarda que servia de escrivão, podia-se tentar pôr ordem no coreto. Mas nada disso – a praxe era começar o arraial a sério, não interessava concluir se havia ou não parentescos/testemunhas que estavam do contra ou a saborear a bílis de perseguição. Claro que havia material e aos montes: tios, afilhados, primos de primos, irmãs da cunhada de uma vizinha, “…fora a Laurinda, coitadinha, viu tudo mas não conseguiu vir, está de “paquete”, “no pior daqueles dias”, tod´enfaixada na cama, muit´enervada com tod´esta desgraça, inté já bebeu chá de tília e acendeu uma lamparina a S. Judas Tadeu, veja lá, o senhor guarda”… E logo a seguir, estoirava o balão, um afiar de facas que nem precisava de alguidar:
“- Ela chamou-me Filha da Puta, ó senhor guarda! E agarrou-me pelos cabelos.” “- É mentira, Tudo Men-ti-ra! Ela é que me arranhou toda e gritou que o meu marido era Cabrão e mesmo aqui na minha rua, vejam só! ”.
“- Juro pelas alminhas que nunca disse isso!”; “-Eu é que juro pela minha saúde! que tu vais fazer tijolo e eu ainda cá fico, neta de uma cabra ! ”.
“- Jura, jura, uma ova!Paga mas é os JUROS das cautelas de penhor que deves aos molhos, ó minha vaca!”; “ - Cala-te aí, ó porca! Vai afocinhar a cara no colo do guarda-noturno que já está de breguilha aberta à tua espera, toda a gente sabe!”.
“- Ai, qu´ele dá-me uma coisa! Agarrem-me qu´eu dou-lhe cabo do canastro! ”
“ – Vem daí ó lambisgoia! Vai enfiar uma vela no rabo, que ainda te sobra pavio! ”.
E por aí fora, um bota-abaixo de peras frescas, ah, Fernão Lopes e Gervásio Lobato, se vocês aqui estivessem…Conseguir que os guardas acalmassem os gafanhotos de insultos e o pobre do guarda datilografo passasse tudo nas teclas da máquina, seria festival digno do Pátio das Cantigas. Mas nem tudo eram fúrias desencabrestadas - enchia-se o largo da esquadra de fardas a conter as montanhas de curiosos, todos sabiam, todos tinham visto, foi ela – Não foi, não senhor. Calma no andor, era a minha vez de ajudar: havia ou não cortes, feridas, ossos partidos, nódoas negras, beliscões, roupa rasgada? Precisam de hospital ou de ir ao posto médico? A reação era logo de fugir ao demo. Tinha sido só puxar de cabelos, agarrar e apertar de braços, estavam sobretudo ofendidos, com os ouvidos cheios de pragas, aqui e ali com requintes de criatividade (“-Vai é comer 14 chicharros com azeite e vinagre!”; “ – O teu quintal de baixo já nem grelo tem. Nem aqui, nem em Santarém!”). E durante isso, guardas e testemunhas pediam-me um cigarrinho: - Desculpe lá, ó Dr. mas isto ”pega c´a gente”, ó depois vou ali à loja do Simões e trago-lhe um maço. Não falhava a Marca Abreu, não lhes disse?
Mas acabava tudo, coisa de 2 meses depois (a Justiça funcionava naquele tempo, sim senhor, hoje estaria em greve) na Boa Hora e em bom estilo vicentino - testemunhas e réus abraçados, no sabor antecipado de perdão coletivo que já tinha sido regado com tinto do Vale-do-Rio, jaquinzinhos, peixinhos da horta com arroz de tomate e claro, travessas de arroz doce e leite-creme com coraçõezinhos desenhados a canela. Mas a absolvição não poupava 2 ou 3 multas de 80$00 a 340$00 cada, viva a equidade judicial mas doía, sempre era dinheiro. E na base do “ou pagas agora e na chinfra” ou vais para o alto do Eduardo VII (vulgo, Penitenciária) ou respirar ares de Tires, “para amansar o esqueleto”. Dificilmente o juiz decidia perdão de multas, exceto se a ré estivesse a amamentar filhos de colo, era assim e acabou-se. Uma vez fiz as contas: 340$00 a dividir digamos, por 3 palavras com 11 letras (FILHA DA PUTA) = 33 letras, mais 1 palavra com 6 letras (CABRÃO), dava um TOTAL de 4 Palavras, e 39 Letras, ou seja, dava 85$00 por Palavra e 8$72 (números redondos) por Letra.
Perguntem agora a uma bisavó centenária, a um computador da 1.ª e mais rudimentar geração ou ao Instituto Nacional de Estatística quanto custava então 1 quilo de couve-coração, ½ quilo de caras de bacalhau enrolado; ½ quilo de arroz carolino; ½ dúzia de batatas de Alenquer; ½ quilo de costeletas de cavalo cansado, 1 “Imperial” sem direito a tremoços e 1 bilhete de autocarro Baixa-Areeiro e temos uma ideia do que custava uma troca de línguas afiadas e puxar de cabelos pelas Lisboas daqueles calendários.