Vasco chamava a tia Paulina de “Poupinha” desde que iniciara a titubeante articulação das palavras, e Poupinha ficou na afeição e na dedicada devoção com que a seguiu sempre e a tia lhe retribuiu acompanhando-o pela vida fora. Confidentes e cúmplices.
Luísa e Carlos tinham uma espécie de invejoso ciúme, motivando críticas mordazes e azedas que esbarravam na mais completa indiferença de Vasco e Tia Paulina. Mais do que Pedro, o irmão, Vasco era quem melhor conhecia Paulina e os seus segredos, embora Pedro fosse o confidente da juventude, sem dúvida a época mais importante na vida de Paulina.
─ A tia agora quer dar conselhos sobre a educação das minhas filhas ─ queixava-se Luísa. ─ Que sabe ela de crianças! Nunca teve filhos, casou em desespero de solteirice tão tarde…
Pedro remexeu-se na cadeira, incomodado com as palavras da filha e do genro e desesperado pela cegueira que lhe limitava o feitio explosivo.
─ Que sabem vocês sobre a vida da tia?
Carlos apressou-se na resposta:
─ Eu só sei que ela tem aquela devoção pelo velho do barretinho e daquele manto esquisito e daqueles actores brasileiros, o que me leva a crer que foi bastante desmiolada em relação a homens em geral e namorados em particular. Haja em vista aquele namoro com o Candongueiro, um verdadeiro desespero para os pais.
E Luísa, mesquinha, acrescentava:
─ Levou a vida a dançar ao som daquele suposto piano, que só existia na cabeça dela e naquele poster das mãos sobre o teclado.
Pedro lastimava interiormente a infelicidade da irmã, que nunca se queixava e realmente vivera como se a vida fosse um eterno bailado trágico, que ela tinha a obrigação de viver como um feitiço, uma maldição, ou um tributo à liberdade.
─ Aqueles actores ─ disse Pedro com muita calma ─ naquelas fotografias, representam homens que lutaram abnegadamente por ideais, liberdade, igualdade… Ideais que motivaram a minha irmã durante toda a vida. Sobretudo homens que se notabilizaram pela coragem física, limpidez de princípios, rectidão de caracter. O facto de serem actores, olhem, foram actores que representaram heróis melhor que os originais…. ─ e desatou a rir.
─ Garibaldi, por exemplo ─ adiantou Vasco da espreguiçadeira ─ o velho do barretinho e do poncho gaúcho que usou até ao fim da vida.
Entretanto, chegava Isabel:
─ A Tia tem verdadeira devoção pelo Garibaldi.
─ Ideais em comum com o António ─ murmurou Pedro como se falasse com os seus botões.
E Carlos, sempre atento a tudo o que lhe pudesse ser útil naquela bizarra caminhada política, aproveitou logo:
─ Mas afinal esse António pianista existiu. E foi importante para a tia.
Vaco resmungou, meio sonolento:
─ A Tia casou naquele dia de Maio de 1944 em que completou dezoito anos, Carlos. Jamais em desespero de solteirice… Foi aos dezoito anos, vivendo o que foi o grande amor da sua vida. Tio Neville e tia Edith não vieram apadrinhar, o tio estava embarcado, na guerra. Os ingleses não eram bem tolerados por cá. O casamento foi em casa dos avós, eu vi as fotografias. A prima Marinela tinha trazido um tecido de seda cor de champanhe com que a avó fez a túnica da Tia Paulina e o Agostinho sapateiro forrou umas sabrinas velhas… O António usou a casaca dos concertos e a avó o velho vestido de tartan do clan familiar. O luxo desse dia foi a valsa “bodas de Paulina” que a avó executou ao piano para os noivos abrirem o baile.
Entretanto, Pedro interrompeu o filho:
─ O bolo foi um milagre daquela cozinheira que esteve connosco até morrer, não me lembro do nome que era bem bizarro. Ah! Basilícia! A cozinheira que a Belô herdou dos pais. Basilícia! E ainda se ria com gosto. O avô consultava de graça os vizinhos doentes e quantas vezes lhes comprava os medicamentos, tuberculose, fome, e como se não bastasse, o racionamento dos bens de primeira necessidade, açúcar, manteiga, farinha… sei lá eu! Foi nessa troca de favores que ela conseguiu o açúcar para fazer um bolo supimpa. E tudo foi muito difícil porque estávamos em guerra. A tia vestiu a túnica de seda champanhe, assim como as écharpes que esvoaçavam como promessa de felicidade, o cabelo apanhado numa trança meia desfeita, uma coroa de loureiro a enfeitar a cabeça, o sorriso que hoje todos desconhecemos e segundo parece antecede as tragédias. Linda! O padrinho foi um Vargas, amigo do António que regressava ao Brasil, a prima Marinela e eu e Belô que já estávamos noivos.
Fez-se um silêncio opaco, que a cegarrega das cigarras timidamente tentava perfurar. Todos viram a lágrima que escorreu dos olhos cegos de Pedro Barros.
─ As mãos naquele teclado são as mãos do António.
Ninguém dera porque Paulina se aproximara:
─ Muitas vezes fazemos juízos extravagantes sobre o que ignoramos e somos cruéis, pouco limpos a avaliar os outros. Basta a crueldade da vida. Tem razão, Pedro, as mãos do António naquele teclado tocando eternamente “bodas de Paulina”.
A tarde cumprira-se. Um vento leve levantara-se e agitava as folhas de loureiro, as écharpes de Paulina. Um silêncio de pueril embaraço desceu.