Dediquei as minhas últimas crónicas a uma tese que fará o seu caminho: a de que Abrantes foi uma cidade dicotómica e que residiu nesse dualismo o dinamismo social de que enfermou durante muito tempo; e que o declínio da cidade coincide, no tempo, com o fim desse padrão, que ao deixar um vazio, no modo como se forma a idiossincrasia abrantina, abriu caminho para o amorfismo, a apatia e a inércia, a diferentes títulos, mas de forma impactante no modo e vida da cidade e áreas envolventes.
E porquê esta questão do fim do dualismo em Abrantes? Ao ponto de, segundo a minha tese, determinar um abrantino-tipo antes e depois do fim deste paradigma? Uma comunidade diferente gera uma cidade diferente e pessoas diferentes, que são formadas de modos diferenciados.
É por isso que tantas vezes me questiono sobre se esses abrantinos de que falamos hoje são os mesmos do passado? Haverá quem fique arrepiado com esta tese: os que nunca saíram da cidade para onde quer que fosse, seja a título profissional ou outro, vivenciando experiências de vida que lhes permitiriam trazer de volta à comunidade outras ideias e outro modo de ser. Para esses está tudo bem! Ouço-o muitas vezes!
Centremo-nos de novo na questão da cidade dual. Porque é que este modelo de vida social era importante para a Comunidade e foi importante na formação do espírito abrantino avançado e inquieto?
É necessário notar que todas as dicotomias remetem para algo básico na natureza humana: o doce e o amargo; o bem e o mal; o belo e o feio, etc.
Quer dizer as dicotomias abrantinas que são atrás referidas não constituem um a valor em si, mas antes são partes de um conjunto de valores e de princípios que se transmitem dentro da comunidade e são valorizados a partir da existência de um sistema social que os tornou parte integrante do seu modo de vida.
Este dualismo abrantino era o fazedor de mentalidades e ao mesmo tempo permitia que os abrantinos fossem apurando um sentido ético e de mérito sempre a partir do confronto entre “dois”, um sistema que podia ser hierarquizado e era um gerador de escolhas: poder escolher; até mesmo exigir a possibilidade de escolher era uma das maiores virtudes asseguradas pela cidade dual.
Quando esse sistema desaparece, sem que um novo tenha tomado o seu lugar, inicia-se um período caótico na cidade, nada que fosse mau: do caos surgem muitas vezes as situações mais criativas; não foi o caso, aqui, até agora!
Uma última curiosidade sobre a Abrantes cidade dual. Afinal o dualismo não morreu: estará a fazer um compasso de espera para, um dia, ressurgir com mais força! Senão veja-se: a fazer jus ao dualismo uma parte dos abrantinos (tanto entre os residentes como os da diáspora, menos estes) acha que a cidade atravessa um bom momento; outros (maioritariamente entre a diáspora) acham que a cidade está num declínio acentuado que atinge todas as situações da vida comunitária.
A minha questão hoje é então a seguinte: na ausência dessa qualidade dicotómica que moldava a personalidade dos abrantinos quais são os factores que determinam o seu modo de ser. Ou dito de outro modo: quem são estes abrantinos dos tempos que correm? Motivo para a próxima crónica.