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19 SET 2024
OPINIÃO | "O único lugar vago"
Por Jornal Abarca

Apanhava o comboio das oito da manhã no Entroncamento à segunda-feira para voltar às aulas depois do fim-de-semana. As carruagens iam apinhadas, excepto aquele lugar, logo à entrada, em frente a um homem bem vestido, de cara coberta por uma máscara. Geralmente, para além da máscara, escondia-se atrás do jornal.

Elegante, uma aliança no anelar esquerdo, viam-se cicatrizes contorcidas na testa, não tinha pavilhões auriculares, mas tinha uns olhos espertíssimos, cordovis, por entre um emaranhado de cicatrizes feias.

Olhava-o nos olhos.

Não lhe ouvi uma palavra em anos de viagem à segunda-feira, ele atrás do jornal e eu sentada no único lugar vago.

Chamavam-lhe o homem sem cara e ninguém se sentava na sua frente. Durante muito tempo senti pena daquele homem elegante, alto, uma bela figura, mas sem cara. Imaginava o seu sofrimento e condoía-me.

Por vezes passavam meses em que não aparecia às segundas-feiras e eu pensava que alguma coisa correra mal, se há coisa pior do que não ter cara. Mas sempre aparecia. Aparecia diferente, as cicatrizes iam desaparecendo, a testa foi-se alisando e cresceram-lhe as sobrancelhas. Já tinha orelhas quando conclui o curso e deixei de apanhar o comboio à segunda-feira. Mas ele ainda usava a máscara e a aliança.

Passados alguns anos, vinha eu à tarde de Castelo Branco para Lisboa de comboio e, ao parar no Entroncamento, entrou entre outros um homem elegante, alto, de chapéu mole cinzento como o sobretudo de bom corte, que se sentou num lugar vago logo à entrada. Como havia muitos lugares vazios o homem acabou por vir sentar-se na minha frente. Os olhos cordovis  espertíssimos fixaram os meus. Qualquer coisa me era familiar. Abriu o jornal, pôs o chapéu a seu lado, não trazia aliança, os cabelos embranquecidos em mescla.

Já tínhamos passado Santarém, percebi que o elegante passara a fixar-me com os olhos sorridentes. E era tão insistente o seu olhar que começava a incomodar-me. Até que o homem disse:

- Obrigado.

Não sabia o que dizer. Agradecia o quê?

- Durante anos você foi a única pessoa que se sentou na minha frente nas viagens à segunda-feira.

- Eu?

- Eu sou o homem sem cara, como me chamavam, e ninguém se sentava no banco vago à minha frente a não ser você. Eu nessa altura não podia falar. Fui engenheiro do exército e ao tentar desactivar uma mina fiquei sem cara, com a laringe torta, sem poder falar, salvaram-se os olhos. Os olhos que você reconheceu.

- Então, você regressava à segunda-feira ao hospital?

- Cinquenta e três operações, a minha mulher pediu o divórcio, os parentes evitavam-me, os amigos nunca estavam. A única pessoa que aguentava o meu olhar era você às segundas-feiras de manhã naquele comboio apinhado de gente.

- Tenho cabelos brancos, engordei, envelheci, como me reconheceu?

- Pelos seus olhos e por não desviar o olhar quando fixei os meus olhos nos seus. Sabia que me reconheceria.

Tinham-lhe reconstruído o rosto, a laringe, voltara a falar e a poder apresentar um rosto livremente.

- O que faz hoje?

Esperava-o numa reforma tranquila, escritor ou assim

- Sem família, sem amigos, falo bem inglês… Sou actor. Actor de cinema. Já deve ter visto algum filme onde entrei. Sou famoso. Mas ninguém foi mais importante para mim do que você que suportava o meu olhar às segundas-feiras de manhã quando o banco à minha frente era o único lugar vago.

- Nem sempre a vida tem um curso regular. Por vezes dá reviravoltas artísticas que nos parecem tragédias.

- Tem razão. E nunca se sai igual da tragédia. Fica-se outro. Nem sempre melhor. Mas diferente. Outro.

- Só uma coisa não mudou, a determinação nos seus olhos. Voltou a casar?

Fez um gesto de repulsa definitiva:

- Nem voltei a tentar desactivar uma mina.

E riu-se.

- Moro perto de Londres. Tem aqui o meu cartão. E será sempre bem vinda, corajosa passageira do único lugar vago.

- Porque viaja de comboio, actor e famoso, tem carro com certeza?

Fixou o olhar no meu.

- Não sei. Já ouviu falar em premonição? Vinha de Madrid, o motorista seguiu com o carro para Lisboa, mas foi-me imperioso apanhar este comboio no Entroncamento. Para me sentar no lugar vago à sua frente? Não me pergunte porquê. Não sei responder.

Não voltei a ver a homem sem cara. Vejo os filmes em que é galã quando passam na TV.

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