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21 OCT 2024
OPINIÃO | "O Pastor de Gaivotas"
Por Jornal Abarca

Este ano a minha Perséfone, filha adorada, permaneceu no nosso torrão. O estio não a seduziu e levou para longe, pelo que o meu verão foi tranquilo, estável e permaneci, também eu, no nosso retângulo.

Deste verão ocorrem-me dois episódios pontuais que, de tão ligeiros e breves, poderiam ter ficado submersos nas águas do Letes. Contudo, permaneceram.

Num dos passeios à beira-mar, na minha praia habitual, já cansada e deslumbrada com a paisagem, sentei-me na areia e maravilhei-me com as tonalidades infinitas de um mar, naquele dia cinzento, agitado de vagas belas e impressionantes e revolto. As cambiantes infinitas do horizonte deixaram-me com alma contemplativa japonesa. Depois, prendeu-se-me a atenção em dois vultos caminhantes na direção do ponto em que me encontrava. Minúsculos inicialmente, depois gradualmente maiores pela aproximação. O primeiro era um homem alto, magro, moreno e seco. Uns passos atrás dele, caminhava uma mulher, de estatura mais forte, bem mais baixa e de pele bastante mais clara. Entre ambos distavam apenas uns poucos passos, talvez pouco mais de um metro. Ambos caminhavam em retas paralelas. Num dia nublado, ao fim da tarde, as gaivotas povoavam em bandos o areal. Ele, na dianteira, avançando um pouco mais rápido, liderava a distância física que a pouco e pouco aumentava e, ato contínuo, apascentava gaivotas que, esvoaçando e saltando, iam avançando na direção dos rochedos, tal como o casal. Esta imagem registou-se-me na memória.

Geometricamente falando, aquelas duas retas seriam até ao infinito paralelas, sem nunca se unirem, sem jamais se tocarem… Agravada a distância gradualmente, não só não se tocariam, como progressivamente se separariam na longitude. Assim decorrem as relações humanas, pensei. Há pessoas que nos acompanham num determinado percurso da vida, mais ou menos longo, depois seguem outro caminho, ou o mesmo, mas com outro andamento… Ambos, ou um dos dois, ou a vida, em determinado momento, se afastam. A distância gera distância e aqueles dois tiveram a sabedoria de o fazer pacífica e naturalmente. Infelizmente, sabemos que todos os dias casais desavindos, em vez de colocarem gaivotas de permeio, tiram a liberdade mais importante de todas ao parceiro, o próprio dom da vida. Uma atrocidade que mata mais do que uma guerra. Mentalidades de posse que confundem amor com poder e propriedade.

O segundo apontamento que me ocorre foi numa ocasião, aquando da minha tarefa árdua da preparação da tão apreciada sangria. Tive o privilégio de ser a mais velha do nosso grupo veraneante de cinco. Privei com jovens, portanto… Os restantes elementos do grupo delegaram em mim a mestria desta tarefa. Os conhecedores sabem que esta bebida se prepara de véspera, mas no atropelo da quebra da rotina, um dia tive de a preparar com menos antecedência. Ora, o refrigerante fora colocado no congelador e ficara em pedra. Para o dissolver mais rápido, íamos escorrendo o líquido da garrafa acrescentando do mesmo tipo de refrigerante, mas à temperatura natural e agitando o recipiente com o respetivo conteúdo. Ao agitar, o bloco de gelo rodava e com maior velocidade derretia. Pensei que esta ação, se eu fosse professora de química, biologia, ou outra disciplina das ciências, as quais também tanto prezava enquanto aluna (não fora a paixão pelas letras gritar mais alto…) e que continuo a apreciar, reproduzi-la-ia, certamente, em aula, para comprovar o facto óbvio. Quanto mais se agita, mais a dissolução se torna rápida e, quanto menor o bloco de gelo, mais rápido desaparece… Impossível não realizar a projeção para a escala mundial. O gigante iceberg A23A, um dos maiores do mundo, já solto do leito, próximo da Antártica, qual jangada de pedra saramaguiana, navega pelo oceano. Conseguiu já dar uma volta, a si próprio, e já iniciou a segunda volta nesta dança da morte. Morte sua e nossa. Nossa não se refere ao planeta que, felizmente, nos sobreviverá. Nossa entenda-se seres humanos, claro, e, para as mentes preocupadas e razoáveis, de ecossistemas marinhos.

Para já, a maior parte das pessoas só se preocupará, nos seus banhos de mar e nas suas caminhadas à beira-mar, que o mar já toca nos rochedos que visita causando derrocadas, que a extensão de areia para estender as toalhas dos veraneantes diminuiu para um décimo e que a temperatura da água desceu uns graus…

O pastor de gaivotas, um dia destes, sozinho, já nem terá areia para caminhar e terá de expressar materialmente de outra forma a sua fuga. Mas nada disso já importará… 

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