Costumava ficar, nas raras idas a Lisboa, no apartamento da Gabriela, mesmo ali perto da Av. de Roma. Tinha a chave e a Gabriela quase nunca estava. Quando entrei, observei as malas dela depositadas no chão, chegara e não arrumara nada como era costume. Sentei-me no sofá, afastei meia dúzia de livros, um lenço de pescoço e uma sweatshirt amarrotada, e fiquei a pensar no que tinha para fazer, olhando para o chapéu mexicano que ocupava a mesa de centro.
O meu saco de viagem pouco continha e não chegava a ser preciso arrumar nada, na tarde daí a dois dias lá iria eu para a Beira Baixa outra vez e outra vez até que muito tempo passasse.
Mas abriu-o, nem sei porquê, e lá estava o cahier mouleskine que o passageiro do banco em frente deixara cair. Ainda tentei entregar-lho, mas ele deixou o comboio com tal rapidez que não o apanhei. E agora que ia eu fazer com o caderno que não me pertencia?
Estava neste impasse, quando me lembrei do cartão que ele me dera.
Liguei para o número que lá estava e atendeu uma mulher.
- É de casa do Sr. Peter Sims?
Um silêncio do outro lado e depois uma gargalhada.
- Também lhe deu um cartão? O meu filho dá esses cartões a toda a gente. Não dê atenção.
- Mas o Sr. Peter Sims perdeu um cahier mouleskine quando saiu do comboio e não tive tempo de lho entregar.
- Não se preocupe. Esse ca…qualquer coisa não lhe faz falta. Tem muitos. E o meu filho não anda de comboio.
E desligou.
Desligou.
Nisto a Gabriela chegou a casa. Tinha estado no México a passar umas férias e queria comemorar um aniversário qualquer. De se ter formado, de estar viva, simplesmente comemorar. Com a Gabriela a vida era uma contínua comemoração.
E ar livre.
- Vamos à esplanada, preciso de um café. Tu não?
Eu precisava sempre de um café, um cigarro, dois dedos de conversa.
Contei-lhe a história do homem sem cara, o cahier mouleskine na minha carteira, as gargalhadas da mulher que se dizia sua mãe e o desmerecia.
- Espera que vem aí o Gustavo Terra, que é da Judiciária e deixa ver o que ele diz.
A Gabriela tinha sempre um amigo em qualquer área que podia opinar sobre tudo o que nos afligia.
O Gustavo não apareceu. Entretanto, arrefeceu e eu estava cansada. No dia seguinte seria o tal almoço comemorativo e precisava relaxar um pouco.
Entrámos em casa e o telefone retinia.
Gabriela atendeu.
Era a mãe, ou quem assim se dizia, do homem do comboio. Eu dei-lhe o número de casa da Gabriela, mas ela não deu porque a voz era outra e conversou como se fosse comigo e a Gabriela também não se descaiu:
- Mas, minha senhora, o cahier só será entregue ao seu proprietário. Não o li, nem o faria. Não me pertence.
Silêncio do outro lado. Tanto tempo que a Gabriela ia desligar quando a outra lhe disse:
- Talvez à noite o meu filho possa atender a sua chamada.
E desligou.
Íamos jantar um arroz esquisito que comprei na loja de comida feita, a Gabriela, porém, ficara a magicar no homem sem cara:
- Mas ele agora é actor.
- É galã naquelas séries inglesas policiais. Já o vi e não é nada mau.
- E tens a certeza que é o mesmo.
- O mesmo como?
- O que não tinha cara… A tal que se diz sua mãe diz que ele não anda de comboio.
Fiquei a pensar. O arroz não prestava. Talvez irmos tomar um café e um bolo na esplanada do costume…
O bolo de arroz sabia a perfume.
Mas entretanto apareceu o Gustavo Terra. A Gabriela, que nunca se calava, contou-lhe a história, condimentado com as suas opiniões.
- Isso tudo é estranho. - Disse Gustavo.
- O que é que eu faço ao cahier?
Gustavo opinou, depois de pensar um bocado:
- Metes num saquinho de plástico e deixas que eu investigue. Isto tudo é estranho.
Voltei para a Beira Baixa e sinceramente esqueci o assunto.
Mas o assunto não me esqueceu.