Pela floresta afora o vento uivava como uivava dantes, por vezes o uivo, de tão frio e intimidante, mais parecia trazer também à mistura o uivo de um lobo desesperado ou de uma alcateia faminta. Mas não eram só os gritos prolongados e o que ecoava deles nas paredes do velho casarão, hoje uma sombra decrépita do que fora um palácio monumental e requintado apenas há cem anos, o solar dos condes de Creenshaw e ponto de encontro de toda a nobreza que ainda não falira no vasto condado.
No exterior do palácio ainda pontificavam com altivez muitos abetos-prateados e álamos. Pareciam observar e até vigiar com circunspeção quem passava, e davam um eco vivo do aprumo de outrora. Em casa, a pequena Lia McIntosh, já se habituara àquelas sombras que por ali residiam, tal como ela e a sua mãe, Linda Cheyenne, e já nem os enormes relâmpagos que de vez em quando incendiavam a noite e projetavam descomunais sombras nas paredes a intimidavam. Era como se fossem parte da família, ou pelo menos uns inquilinos regulares que de vez em quando regressavam. É verdade que aqueles enormes lampejos de luz amedrontariam qualquer um ⎼ entravam pelas janelas altas, enormes e de vidraças partidas nas paredes, e tudo ali parecia acordar para a reencarnação ⎼, e os clamores dos trovões que rugiam logo depois, impunham respeito, troavam pelas paredes e petrificavam por instantes mãe e filha. Mas o hábito é a nossa segunda natureza, e as duas já se haviam acostumado ao ambiente gótico do solar e àqueles poderosos e fátuos inquilinos há alguns anos.
Aproximava-se o Natal e, como sempre sucedia, a época era para ambas um tempo de indescritível ternura. Viviam sós há anos, mas nesta época eram muitos os seres da floresta que se aproximavam dos presépios que, em cada ano, iam construindo ao longo de semanas. Aos cães e gatos que faziam parte da companhia, outros bichos da floresta se aproximavam – castores, esquilos, raposas, lobos, até um casal de ursos-pardos, para além de muitas aves e até répteis −, como que hipnotizados por um íman misterioso. Os presépios tinham o que Lia encontrava na natureza, ou o que criava com as mãos e a imaginação, ou então havia recebido como herança do conde Conrad McIntosh, o avô materno de Lia, para quem o Natal tinha uma aura que não se esgotava. A mãe ajudava. E Lia, então muito pequena, ainda recordava hoje uma conversa que tivera com ele.
Tendo ambos ido pescar numa falésia próxima da aldeia do avô, onde ela costumava passar as férias, Lia foi buscar umas pedras para aconchegar alguns pedaços de sobro e lenha seca que depois ateou para preparar o almoço. Colocou sobre as brasas uma grelha simples para assar os peixes pescados à cana, depois de os temperar com salsa e um molho de laranja, servindo-os então em dois pratos com uma salada de feijão-frade, que também ela preparara. Sentaram-se no chão, à sombra de um enorme sobreiro, e não demorou muito que Lia, depois de fixar atentamente o velho conde, exclamasse…
− Avô, pode ser só uma impressão minha sem nenhuma importância, mas nunca comi uns robalos que me soubessem tão bem como estes dois…
− Não é impressão tua não, Lia. Isso deve ser mesmo uma impressão autêntica… − comentou o conde...
− E porque será, avô? Eu não entendo… Lá em baixo, junto às rochas, eu até esfolei os joelhos quando escorreguei ao querer apanhar um robalo maior. Foi um pouco cansativo. Fraquejei a apanhar muitos peixes, mas vá lá que ainda consegui pescar estes dois. Mas foi muito difícil, e só consegui porque me deste umas dicas para colocar o isco, lançar a linha e atraí-los…
− Os robalos souberam-te bem precisamente porque foram difíceis e exigiram-te esforços e sacrifícios para os apanhares, Lia…
− Não estou a entender agora avô…
− A verdade é que o sacrifício que fazemos por algo liga-nos mais a essa coisa, e isso tanto se aplica aos robalos como a muitas outras coisas na vida. O que conseguimos à custa da abnegação e da persistência cria connosco laços muito fortes. E foi porque os peixes não foram nada fáceis, e até esfolaste os teus joelhitos, que os peixinhos te souberam tão bem…
− Já estou a compreender, avô, e tu tens razão. As coisas fáceis, mesmo na escola, não têm o mesmo encanto. O que é mágico e vale a pena são mesmo as coisas mais difíceis e em que temos de nos superar!...
Este ano, Lia já tinha terminado o lufa-lufa na composição do seu presépio que cobrira de figuras, figurinhas e tantos símbolos junto à chaminé da lareira, que nesta altura readquiria a aura bíblica de outrora. E lá estavam, como sempre, em barro colorido, o Menino Jesus no aconchego das palhas da manjedoura, a Virgem Maria e São José, o carpinteiro que adotou o menino, a gruta (adaptada à lareira), a vaca e o burrinho, e depois as outras personagens e símbolos bíblicos mais representativos – o anjo e a estrela, Gaspar, Baltasar e Belchior, os Três Reis Magos do oriente para oferecerem ouro, incenso e mirra…, e os pastores e as ovelhas, como que para recordar que foi num ambiente simples e sem fausto que Jesus nasceu. O presépio obrigara-a a muitas tarefas, até na floresta, mas agora era digno de ser visto – como só aquilo que exige o nosso melhor o é.
No dia seguinte a ter terminado a azáfama Lia e a mãe receberam a visita-surpresa de umas personagens sinistras, na verdade mais pareciam umas bruxas (até de negro vinham vestidas). Apresentaram-se como funcionárias do Departamento de Ética desse estado, e de imediato começaram a fazer os seus reparos e críticas em relação às “desconformidades” (assim diziam elas) da obra natalícia de Lia, que, pelos vistos, parecia não ser eticamente correta.
− Devem retirar daí a Virgem Maria, pois não só estão a explorar a imagem da mulher, como a apresentam curvada e submissa. E isso é inaceitável – proclamou a que parecia ser a mais feminista da trupe. Mas logo o seu tom ríspido foi suplantado pelo da segunda, que, muito irritada, apontou para a vaquinha, o jumento e os outros animais:
− O que é que estes animais estão aqui presos a fazer? Deviam estar em liberdade, e quase de certeza que, para virem para aqui, sofreram maus tratos… Mal tinha acabado, e logo outra, a “sindicalista”, protestou:
− O carpinteiro está ali, mas o sindicato da classe não vos deu autorização para o representarem neste palco…
E, uma a uma, todas as figurinhas foram sendo retiradas por mãos magras e de dedos retorcidos de cima do musgo do presépio. Uma outra mulher falou ainda do Menino, que não podia ser exposto assim, nu, porque ainda não definira nem escolhera o seu género (podendo agora tanto adotar ser rapaz, rapariga ou outra variedade…); quanto aos Reis Magos, era preciso muito cuidado, eram imigrantes, e um até era negro; o anjo também podia ferir as sensibilidades religiosas de algum budista, hindu ou muçulmano; quanto ao musgo apresentado, estava mal porque alterara o coberto vegetal; e quanto à palha era um perigo pelo risco de incêndios. De resto, as figuras não respeitavam muitas normas, nem o princípio da inclusão e de respeito pelas culturas e crenças dos demais…
Uma a uma, as figuras de barro foram sendo subtraídas pelas zelosas funcionárias. O musgo e a palha também, por causa da pegada ecológica.
Poderia ficar a manjedoura, sim, mas para isso teriam de mostrar que era de madeira reciclada e com origem em bosques certificados para produzirem madeira para aquele efeito… E assim ficou reduzido o presépio que Lia, com tanto enlevo, criara durante todo aquele tempo.