Completam-se no próximo dia 7 de janeiro 700 anos sobre a morte, em Santarém, do nosso rei D. Dinis. Tivemos bons reis, outros foram medianos e também houve monarcas maus e medíocres. D. Dinis pertence à estirpe dos primeiros, à nata régia.
Completam-se no próximo dia 7 de janeiro 700 anos sobre a morte, em Santarém, do nosso rei D. Dinis. É uma data que está pronta a ser ignorada por muitos que põem o preconceito e as ideologias acima do amor à verdade, embora também saibamos que esta tem muitas cores e subjetividades. Mas esta data não deve ser ignorada. Porque, independentemente de Portugal ter cortado abruptamente com a monarquia há já mais de um século, teve quase oito sob o seu mando. Foi muito tempo, e a nacionalidade muito lhe deve. Tivemos bons reis, outros foram medianos, e também houve monarcas maus e medíocres. D. Dinis pertence à estirpe dos primeiros, à nata régia, foi um rei extraordinário, talvez o de maior talento entre todos, decerto um monarca único. O que fez foi admirável. De algum modo, refundou Portugal.
Tenho plena consciência de que todas as comparações são um pouco odiosas. E não é esse o registo que quero sintonizar, até porque em tantos anos de monarquia foram muitos e diferentes os desígnios do reino e as condições para reinar. Distintas foram também as circunstâncias culturais, sociais e políticas em que os soberanos governaram e diversas as necessidades e as motivações dos portugueses. Além disso, D. Dinis também não foi um santo, teve algumas deslealdades, nomeadamente com a esposa, Isabel de Aragão, essa sim santa. Mas também é preciso reconhecer que em tempos medievos os padrões morais e de fidelidade eram outros, admitindo-se até ao Rei o que talvez hoje não se admita aos chefes de Estado modernos. Pruridos à parte, foi muito, imenso e marcante, o que D. Dinis fez por Portugal e pelos Portugueses, o Rei Lavrador foi um visionário no seu tempo e, acredito que apesar de esse tempo ter finado há 700 anos, marcou os séculos seguintes. Talvez marque ainda a nossa existência, já em pleno século XXI e a assistir perplexos ao boom das novas tecnologias e ao advento da Inteligência Artificial.
Foram grandes as exigências que o seu tempo lhe pediu, mas o Rei Lavrador não só lhe correspondeu como soube ver mais longe, mais além. E definiu, com muitas outras e relevantes medidas, a plantação do pinhal de Leiria, que teria a finalidade de suster a invasão das areias marítimas para o interior, mas também de produzir árvores capazes de sustentar a aventura dos Descobrimentos anos depois. A tradição popular propagada soube honrar este talento e a capacidade para estudar, aconselhar-se e na altura certa decidir. Depois dos reis conquistadores e dos povoadores, era a altura de estabilizar o reino, dar-lhe coesão e encontrar-lhe um rumo que pudesse definir o seu papel. D. Dinis, a quem foram também reconhecidas raras capacidades diplomáticas, foi quem o fez. Na altura mais propícia (Castela encontrava-se numa posição particularmente frágil) negociou as fronteiras do reino no tratado de Alcanizes. São das mais antigas fronteiras da Europa. Depois consolidou a nação, com a criação de forais e de feiras, e promoveu a sua defesa, com a construção, adaptação e reparação ou reforço de castelos, sobretudo na raia, onde era preciso garantir que o acordo de Alcanizes seria acatado. Ou enfrentar alguma eventual incursão inimiga, porque a ingenuidade de acreditar só no acordo era má conselheira. E assim investiu em praças-fortes e castelos como os de Vila Nova da Cerveira, Longroiva, Sabugal, Penamacor, Castelo Novo, Nisa, ou Castro Marim. A voz quase sempre sagrada do povo registou os dotes do rei de forma bem expressiva no seu desígnio: “El-rei D. Dinis fez tudo quanto quis”.
Estabilizando as fronteiras onde antes eram terras com uma soberania incerta, usando ele próprio e impondo a língua que já se podia considerar portuguesa onde antes imperava o latim, e criando a Universidade, onde antes não existia nada, pode dizer-se igualmente que o também Rei Poeta, soube plasmar culturalmente a lusitanidade no país. E tudo isto num ambiente adverso que ou soube vencer ou soube contornar, ora com força, ora com habilidade e maestria. Iniciou o reinado de 46 anos em 1279, era o filho mais velho de D. Afonso III, o legítimo herdeiro à Coroa, mas logo de início teve de enfrentar as veleidades do irmão, o infante D. Afonso, e terminou-o em confronto aberto com o filho, o futuro D. Afonso IV, o Bravo. Fogoso e impaciente por assumir o trono, D. Afonso IV temia que o pai o oferecesse a Afonso Sanches, um dos filhos de D. Dinis fora do matrimónio e, talvez, apesar de bastardo, o seu predileto. Antes de tomar o trono, as relações de D. Dinis com a mãe (D. Beatriz de Castela) também não eram propriamente famosas, e, já no final do reinado, igualmente não o eram com a esposa, a Rainha Santa, mas também rainha mulher.
Começou D. Dinis, talvez o primeiro soberano português deveras alfabetizado, o seu reinado com a pesada herança de ser o sucessor de três monarcas que, por idênticas razões, tinham entrado em conflito com a Igreja Católica. Em comum tinham o facto de terem procurado obter mais algum rendimento para a depauperada Coroa e desafiaram assim os privilégios leoninos da Igreja Católica com as suas propriedades e rendimentos obtidos por doações dos fiéis e isentos de quaisquer tributos ao rei. Quando alguém morria, e para salvar a alma, deixava uma boa parte à Igreja e a outra aos filhos. O problema é que a parte da herança para o clero ficava isenta de pagar impostos ao rei e o reino ia empobrecendo cada vez mais. Roma era poderosa e muito influente, havia que sanar os conflitos. D. Dinis acabou por conseguir os seus desideratos e regularizar o caso assinando a concordata com o Papa Nicolau IV.
Eram reconhecidas as suas depuradas capacidades de negociação e até a sua autoridade entre os pares dos reinos de então, não tendo sido alheias a este facto as suas raízes familiares e a sua educação, que contou com o saber do aio Lourenço Gonçalves Magro. Nas veias do Rei Poeta corria o sangue proveniente da Casa Real Portuguesa, mas também o das aristocracias de Borgonha, de Castela, de Inglaterra e da Suábia (na Baviera), e assinava pelo seu punho e com distinção os documentos régios: "Pela Graça de Deus, Dinis I, Rei de Portugal e do Algarve".
O Rei Lavrador redistribuiu terras, desenvolveu a agricultura, criou forais e instituiu as feiras francas, concedendo privilégios e algumas isenções a muitas povoações, designadamente junto da fronteira e no Interior, que conhecia muito bem, apesar das naturais dificuldades de transporte de então. O pinhal de Leiria foi uma ideia sua, sustinha o avanço das areias, protegia os solos e desenvolvia grandes arvoredos. Talvez já tivesse na ideia algo precocemente parecido com a saga dos Descobrimentos Portugueses. Daquela madeira seriam feitas as caravelas, naus e galeões para sulcar os mares e descobrir terras desconhecidas… Talvez a ideia pareça algo fantasista, mas já não o será tanto se lhe juntarmos dois factos: foi D. Dinis quem contratou o genovês Manuel Pessagno (tornar-se-ia o almirante-mor do reino) para orientar a construção de navios e zelar pela navegação marítima tanto em tempos de paz como de guerra; e, pouco antes, celebrara um tratado de comércio com a Inglaterra. E portanto…
Famosa foi também a sua postura e habilidade negocial após a extinção, em 1312, da rica Ordem dos Templários e, obviamente, do seu ramo no território português. Filipe IV de França, encravado em dívidas aos Templários, acusou-os de graves crimes e pretendia ficar com todas as suas posses. Mas D. Dinis opôs-se, e conseguiu obter do Papa João XXII a bula Ad ea ex quibus, podendo assim criar a Ordem de Cristo, que sucedeu à do Templo, e herdou o seu património em Portugal. Além disso o Rei Poeta teve uma notável ação legislativa e administrativa, foi trovador talentoso, deu a capitalidade do reino a Lisboa, mas não esqueceu o Interior e o país, viajava muito. Por estes e outros aspetos foi o meu rei preferido.