No sábado, dia 12, fazem 66 anos de casados. Pedro nasceu em 1915 e Virgínia três anos depois, ambos somam 185 anos e estão prontos a somarem muitos mais. São pessoas felizes a quem só falta “um bocadinho” de saúde
Virgínia Maria mantém o olhar arguto dos tempos de rapariga. “Sabe que idade tinha nesta fotografia? Catorze anos, foi pouco antes de começar a namorar o meu marido”. Mira-se no viço da adolescência… “Pretendentes não me faltavam”. Pois, mas a música foi determinante.
Pedro tocava clarinete na banda da Sociedade: “Fui 1.º clarinete, posso dizê-lo com orgulho”. Virgínia sempre gostou muito de música e quando a banda passava lá ia o “Pedro da Maria Carlota”.
“A minha sogra chamava-se Carlota”, lembra.
Sentado quase em frente à mulher, Pedro olha-a enternecido: “A nossa história é engraçada, mas ela conta…”.
Virgínia ajeita-se no sofá e desenvolta como sempre foi, com as datas bem presentes na memória, recorda a Quinta-Feira da Ascensão de Maio de 1933 em que sentiu um “certo ciúme” ao ver o “Pedro da Carlota” dançar com outras raparigas.
“Foi ali em baixo na Coelheira. Havia uma eira para malhar os cereais e um eucalipto muito grande, não sei se ainda lá está… Eu fui com a minha irmã e outra rapariga, mas só fomos à tarde ver o bailarico. Elas tinham namorados e eu estava com elas do lado de cá, naquele tempo não andávamos à ‘rédea frangalha’. Do outro lado, estava o grupo das raparigas e dos rapazes que andavam a dançar e eu, não sei porquê, é o destino, olhei para ele e senti assim um bocadito de ciúmes das outras. Mas porquê? Eu quase que não o conhecia…”. O “destino” fez com que dias mais tarde, ainda no viçoso mês de Maio, Virgínia recebesse uma carta de Pedro.
“Pedi-lhe namoro por carta” e “veio pelo correio, ainda a tenho ali”, acrescenta Virgínia sem perder o fio à narrativa: “Disse à minha mãe, ela mandou-me dizer ao meu pai e ele só me respondeu: ‘se gostas dele, tu é que sabes. E eu aceitei. Tinha feito 15 anos a 18 de Maio e começámos a namorar a 31 desse mês. Foi assim. Tudo por causa do clarinete”.
Namoraram “10 anos e meio”, no sábado fazem 66 anos de casados e, consideram, são “felizes”.
“Há horas de tudo. Ninguém pense que quando se casa é tudo rosas, porque há aqueles momentos em que por uma casca de alho a gente faz um lavarinto, É para baixar a tensão”, sentencia Virgínia, rindo-se com ar matreiro: “Os homens fazem-nos muita falta, até para ralhar. Então se não fosse isso como é que era? Se tudo calhasse bem, tudo muito bem. Mas os dois para o mesmo lado deitavam a casa abaixo. Tem que haver um que segure, mas ele não segura. O que eu quiser está bem, não pode ser assim, também tem que ralhar”.
Sorrindo, Pedro responde calmamente: “Já lhe entreguei o mando”. “Foi logo quando casámos. Nunca quis saber de dinheiro para nada. É só ‘dá cá’. E eu sempre lhe disse, ‘vai buscá-lo que sabes onde está, não me andes a pedir uma esmola do que é teu”.
“É a prova de que eu tenho confiança nela. É uma boa financeira… Se fosse secretária do ministro das Finanças, o país andava melhor”, graceja.
“Só me faltou estudar”, continuou Virgínia, “mas dantes só estudavam os ricos. Agora só não estuda quem não quer ou quem não tem cabeça. Mas a contar dinheiro ninguém me engana. O meu marido diz muita vez ‘ó mulher parece que fazes tu dinheiro’, e se calhar faço”.
Lua-de-mel passada de barco até Abrantes
Casaram no tempo da guerra, em 1943. Havia senhas de racionamento para tudo e a boda, ao contrário do que era hábito no Tramagal, foi só de um dia.
Virgínia lembra-se: “Nesse tempo não havia comida para festas. A minha mãe fez-me o casamento, teve que ser só um dia, e foi o pai da Luísa Alarico, que dantes escrevia no jornal Abarca, que veio de noite trazer as coisas que eram precisas. As senhas não davam, mas nunca houve falta de comida nem em casa do meu pai, nem na minha. Matávamos porcos que iam para a salgadeira, primeiro comia-se a mão, e no dia da festa de Agosto, que era uma grande festa, é que se partia o presunto. Mas era a chaminé com as varas cheias de carne…, o toucinho salgado… Isso é que era bom. E uma enxada? Eu gosto de ter uma enxada na mão. Era eu que cavava e cortava as ervas do
quintal, não era o meu homem”.
Casaram pelo Registo Civil e em casa, porque dantes nos casamentos iam todos a pé e Pedro não achou “muita graça” ir pela rua acima… “Casámos aqui, veio cá o Professor Silva, morava na casa onde está a mercearia do Rui”. Cinco anos mais tarde casaram pela igreja para poderem ser padrinhos de um dos irmãos de Pedro.
“Foi do irmão a seguir a mim, que já faleceu. Na véspera do casamento, casamos nós e os outros padrinhos e os noivos confessaram-se”.
A casa onde vivem – “até podermos, não deixamos a nossa casa” – na Rua da Bela Vista, foi construída por ambos antes do casamento. “E a minha mulher, então namorada, é que deu serventia aos pedreiros”, recorda Pedro. “Nunca me poupei, nunca tive medo do trabalho, nem medo de ir onde fosse preciso”, afiança.
A casa foi feita aos poucos, porque dantes não se pedia dinheiro aos bancos. “Juntávamos um dinheirito, abriam-se os alicerces, passado algum tempo levantavam-se as paredes exteriores, mais um tempo era o telhado, e por aí fora… Era assim naquele tempo”, recorda Pedro que começou a trabalhar na Metalúrgica Duarte Ferreira aos 14 anos. “Trabalhei lá 52 anos e quando fiz 50 anos de casa deram-me um relógio de ouro, porque eu era chefe. Os que não eram chefes e tinham 50 anos de casa recebiam um relógio de aço”.
A filha, a única que tiveram, nasceu oito anos depois de casados. “Vive no Entroncamento, temos dois netos e uma bisneta. Foi um parto muito difícil, ela era muito grande, faltava-lhe cinquenta gramas para cinco quilos, já pode ver. Foi tirada a ferros e a sangue frio... Era professora, agora já está reformada… É muito boa, está sempre preocupada connosco”, suspira Virgínia. Pedro acena afirmativamente.
“Bom, mas ainda falta uma coisa. E a nossa lua-de-mel?” É a vez para a deixa de Pedro: “Sabe como foi? Casámos e no dia seguinte, de manhã, levantámo-nos e fomos por aí abaixo apanhar a barca para Abrantes. Chegámos lá, levantámos as senhas de racionamento e voltámos para casa. Foi assim a nossa lua-de-mel”.
Os “pão de milho”
Pedro e Virgínia tiveram durante mais de 50 anos uma sapataria no Tramagal. “Gostava tanto do meu balcão…”, recorda Virgínia. Mas foi Pedro que decidiu abrir o negócio com um amigo.
Na altura, não havia ninguém que vendesse sapatos no Tramagal só no Crucifixo. “Os primeiros sapatos da minha filha, era ela muito pequenina, foram comprados no Crucifixo. O meu marido não achou jeito nenhum a isso, então o Crucifixo tinha uma sapataria e o Tramagal não?”
A sapataria começou por ser na casa onde vivem, depois passou para perto da igreja e, por fim abriu no que estava para ser a garagem deste ternurento casal. “Gostava muito do meu balcão, entrava para a loja esquecia-me da casa por completo. Ele não gostava muito”.
“Não tinha paciência para aturar as mulheres”, confirma Pedro. “Ele era o salto que devia ser assim ou assado, o bico que devia ser de outra maneira… Havia sempre uma coisa para pegar e eu dizia para a minha mulher, ‘vai lá tu vender os sapatos que eu não consigo’. Com os homens era mais fácil”.
“Eu tanto atendia homens como mulheres, era igual. A loja estava sempre primeiro do que eu”.
Determinada, Virgínia nunca pediu meças. Fazia o que tinha que ser feito, sempre com brio e não lamenta as manhãs frias de inverno em que lavava a roupa nas ribeiras. “Tínhamos que partir o gelo, mas a água da Ribeira do Caldeirão lavava muito bem. No Tejo só lavava as passadeiras, a outra roupa era nas ribeiras. Era assim que faziam as mais asseadas. Aos tanques que havia ao fim da rua da Fonte Nova, nunca fui. Aí batia-se tudo, a roupa e a língua”.
“Mas o Tramagal era mais alegre naquele tempo” e olha para o marido orgulhosa: “Ele tocava tão bem. Tocava nos teatros, nos circos quando vinham ali ao Largo dos Combatentes, nos cinemas. Lia o papel e tocava não era preciso ensaiar e lá ia a Virgínia com ele, isto já depois de casados”.
Mas a Virgínia também fez teatro: “Fazia aquela parte das variedades que havia sempre no fim dos teatros e cantava
muito bem”.
Pertenciam à Sociedade Artística Tramagalense, primeiro designada Grémio Tramagalense: “Éramos os do pão de milho, como os do Teatro nos chamavam, mas éramos nós que tínhamos os melhores espectáculos. Havia uma grande rivalidade”.
Perfis
Virgínia Maria José Grácio nasceu a 18 de Maio de 1918, em Casais de Revelhos, freguesia de Alferrarede (Abrantes) e veio para o Tramagal com dois anos. “Os meus pais eram quinteiros e vieram para a Quinta da Barca”, de Eduardo Duarte Ferreira.
Teve uma irmã, já falecida e nunca nada lhe faltou. “O meu marido costuma dizer que ao pé dele era rica, tínhamos tudo para comer. O meu pai tinha o salário dele e podíamos comer de tudo o que havia na quinta”.
Pedro Diogo Rodrigues Grácio é o mais velho de nove irmãos, dois dos quais morreram em pequenos. Nasceu no Tramagal a 27 de Junho de 1915, o pai trabalhava na Metalúrgica e com uma família numerosa a vida foi mais dura. “Actualmente somos só cinco porque já morreram dois. Morreu uma irmã e o meu irmão a seguir a mim, aquele de quem fomos padrinhos do casamento”.
“A minha vida foi muito mais difícil, sete irmãos e só o meu pai é que ganhava. Tinha também uma pequena reforma porque combateu na I Grande Guerra e levou um tiro num braço. Quando o meu pai foi para a guerra eu já fiquei na barriga da minha mãe. Entre mim e o meu irmão que morreu havia uma diferença de cinco anos, foi o tempo em que o meu pai esteve na guerra. A minha mãe morreu com 43 anos, tinha o meu irmão Manuel, o mais novo, três anos”.
Apesar das dificuldades Pedro, tal como Virgínia, fez a quarta classe e pouco tempo depois entrou na Metalúrgica. Virgínia aprendeu costura e passava vários meses por ano em Lisboa para fazer companhia a uma das meninas Duarte Ferreira. “Tive uma adolescência muito feliz”.
E uma velhice também, acrescentamos nós.