Recentemente comemorou 25 anos de ordenação com uma missa na sua terra natal, o Tramagal (Abrantes). Alfredo Oliveira Dinis, padre jesuíta, doutorado em Cambridge e director da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica, em Braga, considera que vivemos numa espécie de tsunami cultural, num período de mudança de paradigma a todos os níveis, incluindo o religioso.
A sua decisão de seguir a vocação sacerdotal foi por influência de uns jovens jesuítas que conheceu?
Alguma, mas pouca. Comecei a pensar fazer-me padre, ainda que vagamente, antes de conhecer os jesuítas, tinha 15 ou 16 anos. Tinha uma vida de missa ao domingo e uma certa consciência da minha relação com Deus, portanto não ia à missa só por ir. No Verão antes de ir estudar para Lisboa, um grupo de rapazes jesuítas, estudantes de Filosofia em Braga, estiveram no Tramagal, Santa Margarida, Rossio… Eram uns 30 ou 40 e espalharam-se por aqui, durante o mês de Agosto. Durante esse período, adoeci com gripe e um desses jesuítas, que também visitavam pessoas doentes, veio visitar-me. Conversámos um pouco, disse-lhe que estava a pensar ser padre e que ia estudar para Lisboa. Ele perguntou-me se eu conhecia algum padre que me pudesse acompanhar, como não conhecia ninguém, fiquei-lhe muito grato por ele me indicar um. Naturalmente, indicou-me um padre jesuíta, com quem contactei durante os anos que estudei no Instituto Comercial e depois no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, que é hoje o ISE. Os jesuítas ajudaram-me a descobrir o meu caminho, mas eu fiz o meu discernimento vendo todas as ordens religiosas que existiam. Escolhi os jesuítas porque pareceu-me que era a ordem religiosa que dava uma formação melhor. Sempre tive a noção que, para ser padre, temos que nos preparar muito bem e o mundo, já naquela altura, estava a mudar. Tive uma preparação muito longa, entrei para os jesuítas aos 21 anos e só acabei a minha formação aos 37 anos.
A preparação intelectual era um dos seus objectivos, mais do que ser pároco?
Realmente os párocos estudam seis anos. Eles têm a missão de estar nas paróquias, se bem que eu pense que estar numa paróquia hoje, não é o mesmo que estar numa paróquia há 30 ou 40 anos. Às vezes penso que os padres diocesanos deviam ter uma formação adequada aos tempos de hoje. Fico sempre muito admirado quando vejo os padres diocesanos serem ordenados com 25 ou 26 anos. Nos jesuítas com essa idade é-se um jovem, é preciso esperar mais uns 10 aninhos para amadurecer. Não estou a desdizer dos padres diocesanos, são uns heróis, com a formação que têm fazem-na render muito bem e, depois tudo depende da maturidade de vida. A formação pode não servir para nada, ou para muito.
Começou por estudar Economia, como é que a Economia entra na formação religiosa?
Tive o discernimento do meu caminho no final do primeiro ano de Economia e estava desejoso de acabar ali, mas não tive autorização para fazê-lo. Como na altura a maturidade era só aos 21 anos, tive que esperar por eles. No entanto, eu gostava e gosto de Economia e acho que a Igreja e os padres deviam saber mais Economia.
Porque defende essa ideia?
A religião vê-se muitas vezes como uma coisa desligada da vida, uma coisa que se limita às procissões, às promessas, às velas, aos santos… Mas a religião tem que ver com a vida das pessoas, com justiça, com a verdade, com a transparência, com honestidade e a Economia é um dos lugares privilegiados para a injustiça, para a falta de verdade e de transparência. Então a Religião, a Teologia, devia estar aí e não está. É uma falta muito grande da Igreja em geral e em Portugal, certamente.
Foi um dos autores do anterior programa do secundário de Filosofia, uma disciplina que deixou de ser obrigatória, qual a sua opinião sobre esta decisão?
É dramático. Não sei muito bem o que está por detrás desta decisão, nunca perguntei aos ministros, mas isto é uma tendência universal e nunca vi nenhum estudo sobre isto. Há meia dúzia de anos, a UNESCO alarmada com tudo isto criou o Dia Mundial da Filosofia, que se celebra em Novembro, para chamar a atenção da Filosofia. Há pessoas que têm teorias da conspiração: os governos querem manter as pessoas a um nível cultural baixo para não os criticarem, para não desenvolverem a capacidade de análise. Sinceramente não imagino os governos tão mauzinhos. A questão é esta: vivemos numa cultura que valoriza muito a tecnologia. É isso que os nossos governantes pensam, se nos atrasamos em relação aos outros países no que diz respeito às novas tecnologias de ponta, que a maior parte do país nem sequer nunca ouviu falar, então é que ficamos definitivamente para trás. Como não é possível os alunos estudarem tudo, fazem opções e imagino que os nossos governantes sabem tanto de Filosofia como a maior parte do povo português. Filosofia é assim uma arenga, um bocado inútil que não leva a lado nenhum. O espírito crítico não é uma coisa que se encoraje. Veja-se os jogos de computador, todo o desenvolvimento das competências vai muito pelo digital, pelo audo-visual, pelo imediato. Acho isto alarmante. Estou numa universidade e, infelizmente não sou só eu, vemos que os alunos vêm dos secundário – não estou a culpar os professores do secundário, porque eles defendem-se com o básico e eu acho que é o conjunto – de ano para ano, numa situação cada vez mais desastrosa a todos os níveis. Desmotivação de fazer seja o que for, de capacidade de leitura, de redacção, de reflexão, de análise… Não sei o que está a acontecer, não quero culpar a tecnologia, não é a má da fita, mas…
Diz-se que não há maus alunos, mas antes maus professores. Concorda?
Não me meto muito nesse dilema. A sociedade em que vivemos é muito complexa e nós, quer queiramos, quer não, somos afectados. Aos alunos do primeiro ano, ensino uma cadeira que se chama Cristianismo e Cultura, em que falo da evolução da ciência desde Galileu até hoje e como é que isso afectou o Cristianismo. É um assunto que não interessa a 99% dos portugueses, nem ouviram falar, nem querem saber, os alunos também não. Saber que para o ano vamos celebrar 220 anos do nascimento de Darwin e 150 anos da publicação do grande livro que é a “Origem das espécies”, vai falar-se de evolução, de que o ser humano é fruto da evolução, não é descendente de Adão e Eva, não foi criado no Paraíso…E os alunos não querem saber disto para nada. Uso vídeos, grupos de discussão, todos os anos mudo a metodologia. Não adianta nada, os alunos simplesmente não se interessam, sobretudo os alunos de dia, tirando um ou outro caso, os da noite já se interessam. Não culpo os alunos, a sociedade não se interessa, não sabe nem quer saber destas coisas. De ano, para ano começa a haver mais problemas entre alunos e professores. A indisciplina começa a chegar à faculdade. Há meia dúzia de anos, era impensável que acontecesse, são coisas pontuais, mas mesmo pontuais merecem atenção. Não sei o que isto significa.
Outra marca da sociedade actual.
As sociedades que saíram da sociedade agrícola, em que havia uma dependência enorme do sol e da chuva, passaram para a sociedade industrial em que a dependência passou a ser do patrão, para a sociedade pós-industrial em que se produz conhecimento. Têm sido feitas correlações entre a evolução do modo de produção e do sentimento de independência. As pessoas, com 40 ou 50 anos, ainda estão muito dependentes do emprego na fábrica, porque já não apanharam a mentalidade norte-americana por exemplo. Eles não se sentem nada incomodados se ficarem desempregados, vão tirar um curso de seis meses, a sério - não para diminuir o número de desempregados - e no final estão noutro emprego. Essa mobilidade dá-lhes um sentimento de auto-afirmação. Começam a descobrir que são capazes de fazer aquilo que querem, de pensarem só por si, de criarem a sua própria empresa. Isso corta muito as relações com os outros. Hoje os meios de comunicação aumentam o número de comunicações, só que isso vai a par com uma diminuição do compromisso e da profundidade da relação. As pessoas vivem muito no seu mundo e a relação com os outros está a tornar-se muito utilitária. Comunicam enquanto precisam. Tudo isto tem que ver com a indisciplina na escola, na sociedade. As relações não devem ser como uma peça de roupa que se deita fora quando está gasta, as relações é que nos fazem ser quem somos. As relações são muito superficiais e as pessoas são infelizes Nas minhas aulas, digo aos meus alunos que estamos num tsunami cultural que nos vais arrastando. Posso estar enganado, mas tenho esta percepção. Para onde isto vai não sei.
Talvez consigamos…
Acho que sim, não tenho uma visão apocalíptica… Às vezes as pessoas perguntam-me para onde é que isto vai? Até mesmo para onde vai o Cristianismo?
Defende que a Igreja deve encontrar novos locais e novas formas de culto. Perante esta opinião como é que comenta o desejo do actual Papa de que a missa volte a ser celebrada em latim?
Costumo dizer aos meus alunos que estamos numa mudança de paradigma. Também sou professor da Filosofia da Ciência e costumo apresentar as ideias de Thomas Kuhn: a ciência, todas as áreas do saber, evoluem por paradigmas, perspectivas que dominam por certo tempo e que depois começam a estar desadequadas e dão lugar a outras. Mas isso não se faz de um dia para o outro. Durante o período em que os cientistas procuram outras teorias melhores há uma passagem de paradigma que é muito interessante, mas muito incómoda. É nesse período que vivemos. Em todos os aspectos, incluindo a Religião. Vivemos uma mudança de paradigma, não falo em mudança de dogmas não vou por aí, mas na mudança de encarar a Religião, qual o seu papel na sociedade e na vida das pessoas. Até há pouco tempo, até agora, havia muito ênfase na prática se é ou não praticante. A prática era ir à missa, ir à igreja, ir aos locais onde havia coisas – missas, baptizados, casamentos, essas coisas todas – e para a maior parte das pessoas era suficiente, sentiam-se bem. A estética das igrejas, com santinhos, velas incenso, um certo tipo de cânticos, tudo isso teve o seu tempo e vai desaparecer, mas só desaparecerá quando desaparecerem as pessoas. O Papa pertence a uma geração de pessoas que leva para a frente o paradigma que está a desaparecer. E depois há uma série de pessoas que estão com um pé cá e outro lá, não podem sair do paradigma porque as coisas não se fazem de um momento para o outro, mas já perceberam que é assim. Eu não estou à espera que os jovens venham à missa nestas nossas igrejas, que são muito bonitas, mas aquelas imagens, aquelas pinturas do inferno – em Braga ainda é mais presente do que aqui – com os demónios com umas forquilhas e almas a caírem… Tudo isto devia ir para museus da religião, mas não estar presente nas igrejas.
Vai causar “uma revolução”…
Não vou, porque sei que isto não vai acontecer já, mas daqui a umas décadas, sim. Devíamos encontrar uma maneira de usarmos as igrejas, que durante séculos foram locais de culto, que ajudaram muito as pessoas, devíamos dar-lhe um novo uso – não como em Inglaterra que os anglicanos vendem às dúzias de igrejas que são transformadas em discotecas e cabaret – mas devíamos atender à estética das novas gerações que já não tem nada que ver com a dos nossos pais, dos nossos avós e da nossa.Não vai haver jovens nas igrejas, com incensos, com as imagens de Nossa Senhora com o coração cheio de espadas. Eu gosto dessas imagens, também qualquer dia tenho 60 anos não sou propriamente um jovem, mas percebo que não o posso propor à juventude. E não posso propor esta imagem de terror, nem mesmo a imagem do Céu como um jardim com muitas borboletas e passarinhos. Se eu fosse perguntar à maioria das pessoas que imagem é que tem do Céu não sei se ia muito além disto, mas isto já não interessa a ninguém. Penso que o Cristianismo vai subsistir, mas vai ser difícil fazer a transição. Vamos ter de esperar mais uma década ou duas, talvez seja um bocadinho cruel, mas as pessoas têm que ir todas para o Paraíso, para o Céu e deixar que muitas destas tradições acabem por si, muitas já acabaram por si. Mesmo na vida religiosa, nos jesuítas, acabaram por si. Dou-lhe um exemplo, quando entrei para o noviciado, entrei sozinho. No ano seguinte ,não entrou ninguém. Isto foi uma coisa impensável para os jesuítas que já estavam lá há várias décadas. Estavam habituados a ter 30 noviços. Construíram uma casa nos anos 50 para cem jovens – entre noviciado, estudantes de Filosofia, etc. Tinham 100 jovens, tinha que haver horários, práticas… No espaço de 3 ou 4 anos, isso desapareceu tudo, não havia noviços. Eu entrei sozinho não dava para ter um horário, campainhas… Acabou tudo, ninguém decretou, acabou. É o que vai acontecer.
Há mais rapazes no noviciado agora?
Sim, agora nós temos tido um número considerável, tendo em conta a realidade. No noviciado, em Coimbra, temos 12, e em Braga, que é Filosofia, temos 18. Temos 30 jovens, quase voltamos ao antigamente.
Os jesuítas naturalmente conseguiram dar um passo para captar os jovens, afastaram-se dos anjinhos e do céu cheio de borboletas…
Sim, afastaram-se. Na casa onde vivo – vivo com os 18 jovens, mais dois padres e um irmão – vivemos numa comunidade criada de raiz, em 1994, quando fui doutorado. E foi criada de um modo diferente do habitual. Normalmente, as comunidades religiosas estão numa casa, muitas vezes com muros altos à volta, com portões de ferro - foi assim que fiz o noviciado, ainda lá está a casa, com o enorme portão que se fechava às 10 da noite e ninguém saía ou entrava mais. Criámos a comunidade num condomínio que estava a ser construído, perto da faculdade. Comprámos vários apartamentos, ligámo-los por dentro e estamos num condomínio com famílias. Temos as nossas reuniões de condóminos para tratar das despesas da lavagem das escadas, da luz e uma vez por ano convidamos a pessoas do prédio a ir a uma festa a nossa casa. Acabámos com a estrutura horrível das comunidades religiosas que têm um irmão roupeiro, um irmão cozinheiro, um irmão enfermeiro, uma estrutura pesadíssima geradora de conflitos, porque se o irmão roupeiro vai à cozinha sem o irmão cozinheiro é muito complicado. Acabámos com isso tudo. Temos uma senhora que nos faz a comida e de resto vivemos como uma família, temos tarefas. Se no início do almoço chega mais alguém, pomos mais uma cadeira e um prato à mesa, nas estruturas normais era complicadíssimo. As pessoas não têm medo de lá entrar e todos os dias temos amigos que vão jantar, vão almoçar, vão à missa. Batem à porta, entram e sejam bem-vindos. Estou convencido que nós já estamos a mudar de paradigma.
Qual é a sua relação com o Tramagal?
É muito estreita. Venho ao Tramagal várias vezes por ano, sobretudo no Natal, na Páscoa e no Verão. Venho visitar a minha família e aproveito para ajudar os párocos, celebro missa no Tramagal, no Crucifixo, em Santa Margarida, faço baptizados e casamentos. Conheço uma parte do Tramagal, digamos do antigo paradigma, dos 50 anos para cima, as outras não sei, tal como elas não sabem quem eu sou. Há uma parte do Tramagal que eu não conheço, que é o Tramagal do futuro próximo, que não é contra nem a favor da Igreja, ignora-a. Eu penso muito no Tramagal, agora quando fiz 25 anos de ordenação ofereceram-me um quadro com Nossa Senhora da Oliveira que é padroeira e que eu tenho no meu quarto. Rezo muito pelo Tramagal, pelas pessoas.
Foi no Tramagal celebrou a missa dos seus 25 anos de sacerdócio.
Queria muito que fosse aqui. A minha relação com o Tramagal é com este Tramagal. Tenho consciência que não conheço a maior parte das pessoas que nasceram na década de 70 e 80, sei que as pessoas da minha geração também não a conhecem, mas há todo um Tramagal de que eu tenho muito boa impressão… Apesar da terra parecer um pouco mortiça há muita coisa que acontece. Simplesmente, as pessoas deste paradigma que está a desaparecer, não sabem o que estão a fazer e as pessoas do novo paradigma também não estão muito interessadas em saber como é que se faziam as coisas há 30, 40 ou 50 anos, a não ser por algum trabalho histórico ou sociológico. Penso que a própria igreja do Tramagal devia reflectir sobre a situação. O padre Ilídio é uma pessoa excepcional, trabalha muito, as pessoas que estão na igreja também, sou muito amigo delas, mas fico com uma certa pena de não encontrarmos modo de nos interrogarmos sobre o que está a acontecer, de dizermos uns aos outros até ao último: há alguma coisa que possamos fazer? Como disse há pouco, estamos num tsunami cultural, isto ultrapassa os pequenos grupos. Se eu estivesse a viver no Tramagal, mesmo se fosse pároco ou professor pergunto-me o que poderia fazer, se poderia contribuir para que alguma coisa que mudasse?