O momento passou despercebido para quase todo o mundo, mas faço questão de o assinalar. Em Outubro de 2020, limitado por questões de saúde e receios da pandemia, o antigo Presidente do Uruguai, Pepe Mujica, com 85 anos, renunciou ao mandato de Senador.
No seu discurso de despedida, que aconselho a ouvir, falou da sua vida, do seu percurso político, agradeceu a quem partilhou esse caminho com ele, e destacou as provações enquanto resistente à ditadura: “Estive amarrado com arame durante seis meses, com as mãos atrás das costas. Fiquei dois anos sem tomar banho, limpava-me com um lenço. Passei de tudo, mas não tenho ódio por ninguém”. Este é o segredo que leva à liberdade: o combate ao ódio.
Há dias fui entrevistado pela Associação Materiais Diversos, e houve um momento em que me perguntaram que personagem histórica gostaria de conhecer e o que lhe diria. A resposta para mim foi óbvia: “Gostaria de ter conhecido Nelson Mandela. Dizia-lhe ‘obrigado’ e perguntava-lhe ‘como se perdoa assim?’”.
Cultivar o amor é fundamental para o equilíbrio de qualquer sociedade. No seu discurso, Mujica diz: “Há muitas décadas que não cultivo o ódio no meu jardim. Porque aprendi uma dura lição com a vida: o ódio deixa-nos estúpidos. O ódio é cego, como o amor: mas o amor é criador e o ódio não. O ódio destrói”.
Sobre a análise política do que está a acontecer em Portugal já muito foi dito – e aconselho vivamente a leitura dos artigos do Gabriel de Oliveira Feitor, do Jorge Carreira Maia e da Ana Teixeira nesta edição do abarca.
Esta minha reflexão assenta apenas no clima social que atravessamos. Porque já não importa se se é de direita ou de esquerda, há uma divisão fundamentada em algo mais profundo do que isso que está a cultivar um clima de ódio insuportável entre todos: familiares, colegas de trabalho ou conhecidos. Nas redes sociais, nas conversas entre amigos ou em qualquer interacção, perdeu-se o bom senso de ver o mundo a cores: tudo agora é preto ou branco. E tudo serve de pretexto para a ofensa e a ameaça.
Os tempos breus que vivemos vão ser longos. A noite do ódio não passará com slogans, hashtags e palmas à janela: terá de se vencer dando força à democracia. Vai ser duro, mas esperemos que não seja preciso vencer esta noite de ódio com as mãos atadas atrás das costas com arame. Mas, se tiver de ser, seremos muitos dispostos a isso. O sol voltará a raiar: porque não há noite que seja eterna nem ódio que vença o amor.