Nesta segunda crónica sobre o muro da vergonha (em Abrantes) vou elencar algumas curiosidades sobre o referido. Vamos a elas.
1. Quando nasceu o “muro da vergonha”? Aí por meados dos anos sessenta. O Muro foi uma criação da minha geração. Por uma razão muito simples: a maior parte do ano erámos os únicos que andávamos na rua a desoras!
2. Qual foi o elemento mais importante na criação do muro? A abertura do Pelicano! Nos tempos áureos, o Pelicano fechava às 2 horas da manhã. Depois, não havia para onde ir. E o muro ali tão chegado,…
3. Por onde começou o muro? O muro começou pelo lado da então Loja Bruno. Por quatro razões: a) por que era a que ficava mais perto do Pelicano; b) porque nessa parte do muro um grupo podia estar dividido em três: o que estava da parte de cima do muro; o que estava da parte de baixo do muro e o que estava no muro propriamente dito; c) porque era a única parte do muro que não tinha estacionamento de viaturas; d) o muro deste lado era muito baixo, mesmo muito baixo o que permitia a quem o frequentava estar apenas encostado sem necessitar de ser sentar.
4. Há alguém a que convenha atribuir um papel distintivo na consolidação do muro como agente de mudança social? Sim! O Dr. Eurico Heitor Consciência. E porquê? Nessa época o ilustre advogado tinha o seu escritório de advocacia creio que no edifício do Montepio Abrantino (e depois na Rua do Montepio, um pouco mais abaixo) e vivia no Jardim do Rossio. Como trabalhava até muito tarde, quando saia do escritório e ia para casa e via aquela trupe toda a conversar junto ao muro ou ainda dentro do Pelicano, lá vinha ele dar dois dedos de conversa para descontrair. A sua presença era outra coisa. E não tenho grandes dúvidas que foi com ele que o muro ganhou o estatuto de lugar de grandes debates e se tornou o centro da animação cívica de Abrantes.
5. O muro era o quê, concretamente: o Muro era um espaço de liberdade e de tertúlia. Para quem o frequentava, no seu início (e não raro foi olhado com soslaio pelas autoridades, que começaram por surpreender-se com aquele estranho hábito de ficar horas, até muito tarde no muro – aparentemente sem fazer nada.
6. Quantos muros existiam? Em boa verdade podemos dizer que existiam pelo menos quatro muros: (a) o original, da parte da Loja Bruno, onde prevalecia a vertente telúrica e boémia; (b) mais tarde a parte do muro do lado da papelaria Águia D’Ouro (bem perto do Café Abadia, cuja esplanada durante muito tempo inviabilizou a sua utilização telúrica) ganhou vida própria, com grupos específicos e mais reservados, mas com uma utilização sempre prejudicada pela altura do muro e pelo estacionamento de viaturas; c) o muro de dia -durante as horas diurnas, que era um muro mais visual e social, onde se estava para ver e ser visto; e d) o muro da noite, que era o muro, numa primeira fase só dos rapazes e anos depois (já depois de 70, também de algumas raparigas (hei-de escrever sobre essa geração de mulheres abrantinas jovens um dia destes e que foram fundamentais para mudar a cidade). O muro foi durante muitos anos um espaço nocturno (único aliás que estava aberto em Abrantes!).
7. E o nome, de onde lhe veio? No início a frequência tardia junto ao muro era vista com alguma perturbação e desconfiança. O facto de por essa altura se falar muito do Muro de Berlim, apelidado pelos ocidentais como “Muro da Vergonha” foi o ponto de partida para carimbar o nosso muro também como um espaço que dividia as águas: de um lado um mundo conservador, bloqueador, atávico; do outro uma geração que crescia e necessitava de espaço para crescer. O muro foi esse espaço. Designá-lo como “da vergonha” foi também um forma de pôr em sentido essas forças atávicas que continuavam a achar que em Abrantes tudo como d’antes! Não estava...
Voltaremos ao tema, noutro registo, na próxima crónica.