É plausível pensar que a actual pandemia de COVID-19 revelou a outra face da globalização mundial. Habituámo-nos nas últimas décadas a uma aproximação entre povos e culturas, a uma partilha do espaço mundial por gente de todas as paragens. Não apenas os capitais e as mercadorias se deslocam para qualquer lado, como as pessoas se encontram permanentemente em viagem. O aeroporto tornou-se um dos lugares simbólicos do mundo actual, povoado por gente de todas as condições, pessoas que precisam de se deslocar rapidamente. Uns em trabalho, outros em turismo. A implosão do Bloco de Leste, simbolizada na Queda do Muro de Berlim, abriu caminho para que as fronteiras se tornassem muito mais maleáveis.
O processo de globalização não foi e não é pacífico. Desencadeou reacções tanto ao nível social como político. Se se olhar para os conflitos ideológicos de hoje em dia, eles são muito menos económicos do que de natureza cultural e identitária. Culturas ameaçadas pela globalização geram reacções violentas de afirmação. Também nos países onde existe diversidade étnico-cultural, os conflitos identitários, fundados no ressentimento, cresceram, numa espécie de enclausuramento simbólico. Na Europa, a expansão da extrema-direita soberanista é também uma reacção política à globalização. Uma parte dos Europeus assustou-se com a alteridade que o novo mundo lhe trouxe e sonha com o retorno à segurança de um mundo que acabou. Contudo, estas reacções culturais e políticas à globalização são ainda formas de um processo de adaptação a essa mesma globalização e estão longe de constituir o seu reverso.
O reverso da globalização, descobrimo-lo no último ano, é o confinamento. O confinamento significa, de forma radical, o outro lado de tudo aquilo que vinha a suceder. Deslocações limitadas, a azáfama dos aeroportos drasticamente atingida, o turismo estilhaçado. Contudo, o mais importante não é isso, mas a imposição de ficar em casa. De ficar cingido ao domicílio. As pessoas passam da experiência de um mundo aberto à clausura do lar. Sempre que os números dos contágios sobem, fazemos a experiência, mesmo que mitigada pelo simulacro do global que é a internet, da prisão domiciliária como forma de sobrevivência da espécie. Começamos agora a compreender a face oculta da globalização, aquela que ainda não tínhamos visto, mas que um ser microscópico teve o condão de revelar. O confinamento não foi uma coisa que aconteceu. Ele é o estado de sítio do mundo globalizado. A partir de agora é sempre uma possibilidade em aberto, a qualquer momento, pois esta pandemia parece ser apenas a primeira de outras cuja probabilidade é muito maior do que se pensa.