Foi aprovado, no final de Janeiro, o projecto de lei que despenaliza a morte medicamente assistida. Portugal tornar-se-á, se o Presidente da República aprovar o diploma, o quinto país da Europa a oferecer este direito aos seus cidadãos, depois de Holanda, Bélgica, Suíça e Luxemburgo terem sido pioneiros nesta matéria.
Nunca pensei, contudo, que esta questão ainda dividisse tanto a opinião pública. Uma matéria que não mais faz do que pôr ao dispor dos cidadãos uma opção digna, mas que continua a gerar celeuma a quem vive preso numa teia de hipocrisias.
O diploma foi aprovado com 136 votos favoráveis, mas contou ainda com a oposição de 81 deputados. As bancadas parlamentares de CDS e do deputado único do Chega; 9 elementos do PS, 56 do PSD e, a maior surpresa, 10 votos contra do PCP.
Há nesta oposição duas notas de destaque. A primeira é a votação contra do inenarrável André Ventura. O homem que faz campanha a berrar que vai cortar as mãos a quem roubar um pacote de manteiga, que acredita que o regresso da pena de morte é um sinal de evolução e uma arma contra o crime (está provado que não o é – as áreas onde existe pena de morte têm altas taxas de criminalidade), mas que vota contra o direito a pessoas em estado de doença incurável escolherem morrer com dignidade. Aqui, como em tudo, um incurável troca-tintas.
A segunda nota veio do PCP, um partido que no processo democrático em Portugal, quase com cinco décadas, sempre batalhou pelos direitos individuais e colectivos dos cidadãos e aqui aparece com um discurso completamente antagónico a essa luta. Colocou-se ao lado do CDS, do Chega ou da própria Igreja Católica – perceba-se o extremismo da posição – para defender algo que é um sinal de evolução.
Um dos argumentos mais repetido, sobretudo por militantes comunistas, é o de que é uma afronta aprovar esta lei numa altura em que o país tanto luta para salvar vidas. Mistura-se a beira da estrada com a estrada da Beira. Não foi aprovada nenhuma lei para o Estado matar inocentes: foi dado o direito a escolher em situação terminal. Só quem nunca presenciou uma situação limite pode, do alto de uma arrogância moral com aroma de mofo, continuar a justificar o sofrimento dos outros com mensagens divinas.
Em Setembro de 2020 a RTP, no programa Linha da Frente, contou na reportagem “Até ao Fim”, a história de Luís Marques, um homem com 63 anos que ficou paraplégico aos 8, muito por culpa da falta de assistência médica a que os pobres eram sujeitos no tempo do outro senhor, saudoso para muitos. Luís vivia há 55 anos sem qualquer independência, mas totalmente lúcido. Falava inglês e formou-se em matemática sem nunca conseguir exercer. Com todas as capacidades mentais intactas, estava cansado de viver assim. Questionado sobre a componente ética da sua decisão de pôr termo à vida, respondeu a quem coloca essas questões: “Trocavam comigo?”. Elucidativo.
Luís foi obrigado a percorrer mais de dois mil quilómetros de carro até à Suíça, gastou dezenas de milhares de euros, numa operação que envolveu uma logística impressionante. Contou com amigos que o ajudaram porque “este era o sonho dele”. Ninguém deveria ter de se sentir um criminoso para cumprir um desejo final, apenas porque a sociedade ainda faz valer a sua matriz católica.
A morte medicamente assistida não é uma carta branca ao suicídio, mas sim a forma mais dramática de oferecer dignidade à vida humana. E esse será sempre um sinal de evolução.