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14 ABR 2021
OPINIÃO | "O caracol da Olímpia", por Maria João Carvalho
Por Jornal Abarca

Mais ou menos por esta época floria a ameixeira da avó. Também floriam todas as outras ameixeiras mas aquela era a da minha avó e floria mais ou menos quando o tenente que morava ao nosso lado se levantava do seu longo inverno dispneico e acamado e surgia de pijama às riscas e solidéu de renda azul a experimentar o solzinho das manhãs. O tenente não gostava de flores, acho eu, porque no seu quintal só medrava um cacto espinhento que já chegava ao terceiro andar, encostadinho ao ângulo do prédio e eu pensava no que iria fazer o cacto quando passasse as águas-furtadas e não devia faltar muito pela velocidade com que crescia. Mas no quintal do tenente nem uma ameixeira para florir. Em compensação havia a Olímpia que uma vez por semana lavava a roupa e tratava de outras miudezas. A Olímpia trazia o filho, que ainda mamava. Um filho tão loiro e rosado como ela.

À semelhança do tenente, o filho da Olímpia tinha tosse. Uma tosse inclemente que até o fazia chorar. Não era tosse de guinchos e apitos e longos silêncios como se tivesse morrido como a tosse do tenente, era uma tosse importuna e mal-intencionada que não dava um bocadinho de paz ao garoto.

Como eu tinha estado doente há pouco tempo e tomava ainda um xarope horrível para a tosse, fui muito lesta e prestimosa oferecer o meu xarope à Olímpia. Mas a Olímpia fixou-me com os seus olhos celestes e transparentes, riu-se da minha ignorância e com desembaraço fez à minha frente o remédio para o filho: um quadrado de trapo, um caracol grande a que retirou a concha, esmagou, uma colher de açúcar por cima, fechou o trapo em forma de chucha e pôs na boca da criança, com um arzinho vitorioso.

Contei a minha mãe que achou aquela chucha de caracol uma grande porcaria e eu até nem quis a banana que a esposa do tenente me ofereceu. Logo eu que recusava impreterivelmente toda e qualquer prato, mas aceitava sempre a banana da vizinha, desesperando a minha mãe, para não mencionar a raiva da minha avó, que odiava o tenente porque ele costumava denunciar o meu avô aos pides. “Até parece que não tem comida em casa”…resmungavam.

Enfim, na semana seguinte, o cachopo da Olímpia estava curado e eu ainda andava a tomar o meu xarope.

Muitos anos depois, já em funções bioquímicas, li num artigo que os caracóis segregam uma substância que actua nos brônquios.

O caracol da Olímpia afinal estava cientificamente aprovado.

 

Frustração

Foi bonito
O meu sonho de amor.
Floriram em redor
Todos os campos em pousio.
Um sol de Abril brilhou em pleno estio,
Lavado e promissor.
Só que não houve frutos
Dessa primavera.
A vida disse que era
Tarde demais.
E que as paixões tardias
São ironias
Dos deuses desleais.

 

Miguel Torga (1907 – 1995)

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