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18 MAI 2021
OPINIÃO | "Uma Fatalidade Quase Banal", por José Alexandre
Por Jornal Abarca

Vício de burguesia instalada? Padrão analítico-obsessivo? Bipolarismo socrático? Sei lá! A verdade é que detesto, tenho fobia de excursões e programas de conjunto. Porquê? Porque dá sempre nisto - em vez de saborear o que me desliza pelas janelas, os olhos escorpiam, analisam, recortam e pensam. Lá fora, mal saímos de Oslo, os arredores são colinas maltratadas; árvores secas; ruas em obras; viadutos sobre viadutos; cães e donos lourinhos e de olhos azuis, sem trela; lojas, letreiros, sob os quais anda e reina quem faz do andar pela indecisão, o que acaba sem começar. E cá dentro deste autocarro cheio de conforto, esquadrinho cm2 por cm2, os meus peregrinos de viagem, turistada europeia e americana de cartão de crédito reforçado; quem fala pelos cotovelos; quem neles dormita ou finge que lê; quem se refastela no assento, dono d´aquém e d´além mar; mulheres anafadas, com o convés superior a arfar ao ritmo de sutiãs apertados; e quem (como eu), sibarita bisbilhotar com a seriedade de quem resolve um Teorema de Função Inversa. Sou Gémeos, nasci assim - quero ver tudo, analisar, associar, acumular, perceber o que aos outros talvez escape, teimar em ver o sol pela peneira. Mas chega! Viro-me contra mim próprio - tempo de congelar a análise pela análise; de simplificar; ver o que é sem complicar o porquê, como e onde. Ora, já engoliste 1 hora de rodagem, vê agora, ó idiota, como é arriscada esta estrada para Sönderhamn. Estreita, minguada, sempre à beira de precipícios que ousam bordejar fiordes; resvés as gigantescas massas rochosas, todas empinadas, parece brincadeira de titãs. Repara como a estrada ora sobe a meio pique; ora flutua por segundos e arrisca uma descida de 30%. Lá em baixo, a massa líquida imponente não de 1 mas de 3 fiordes que juntam os braços num alagar de espelhos tão espelhados (pleonasmos à vontade) como impassíveis. Efeito de ótica, a enorme tundra líquida parece crescer, aproxima-se da janela. Mas desaparece logo numa curva apertada para a direita que gira, enrola, desfaz-se logo para a esquerda. De quando em vez, uma rajada de Sol espevita o azul do céu, ilumina a costa oferecida aos dedos dos fiordes. É obra. Quase 250 km de mar, a pedir às falésias que não avancem mais, tudo espraiado por rosários de ilhotas. Não dá para tirar fotos, uma chatice, mas é assim mesmo - se estou neste rebanho de rebanho, é por ser a única forma de conhecer este lado da Noruega, sozinho não ia a lado algum.

De repente, o autocarro pára. Cabeças fora das janelas, o que foi? Passagem de nível? O motorista explica: -Não, um caminhão que atropelou um ciclista. A notícia circula, - Um quê? - Um ciclista. Interrompe-se o trânsito, carros, camionetes, autocarros, filas paradas. Saímos. Adiante, um mar de cabeças, no meio, jaz um homem. Barba por fazer, olhos abertos para um céu que mal vê, geme suavemente. Um fio espesso de sangue da cabeça que desliza pelo asfalto, fragmentos de ossos, óculos para um lado, um sapato para o outro, alguns livros espalhados pelo chão, rodas retorcidas, guiador feito num oito. Fervilham frases perdidas, - Quem é? - Está muito ferido? - Já chamaram uma ambulância? - Está a perder muito sangue! - Como é que foi? - Há algum médico? - Parece que se atravessou à frente do caminhão. - Não, o caminhão é que perdeu os travões. - Façam alguma coisa! Congela agora o trânsito da outra faixa, sai mais gente, repetem-se as perguntas e avisos - Não venhas para aqui Ingrid! Não vejas! - Levem as crianças daqui! De uma aldeia, vem gente - É o nosso professor que vem diariamente de bicicleta dar aulas lá em baixo.

- Sempre tão cuidadoso, tão preocupado com as crianças a atravessar a estrada, como foi acontecer uma coisa destas? – Que triste! Como pode ser? Alguém já ligou pelo telemóvel a avisar o hospital e a polícia. A multidão espera. Observa e espera. Comenta e espera. O ciclista geme mais baixo, queixa-se de estar com frio, alguém lhe põe uma manta dobrada a servir de almofada e outra a cobrir o corpo. - Afinal a ambulância vem ou não vem? - Que coisa! Deem-lhe é uma boleia para o hospital! Um grupo de adolescentes põe-se de lado, fumam como chaminés, forma de espantar o drama? Não seja por isso – tiro um cigarro, peço lume, agora fumo eu, a fingir que estou indiferente, mesmo colado a uma agonia. Lá em baixo os fiordes continuam na sua silenciosa majestade, há quem aproveite para fotografar a paisagem, - Lindo, impressionante; – Sim, ma-ra-vi-lho-so! A petrificada vertigem a pique de queda rochosa, é como se protegesse algumas das rodelas esbranquiçadas de espuma do encontro das águas. Uns apontam para um barco à vela que passa lá em baixo, bandeirinha a flutuar no mastro: -Vai para Kristiansum..., -Não, isso é longe, talvez Greystrokh. - Quem me dera ter um barco assim, - Sim, mas é preciso conhecer bem os ventos, as correntes, ter calos de marinheiro. - E depois manter um barco assim, não é nada barato. Mais gente a apanhar máquinas fotográficas. Uma jovem mãe aproveita para amamentar o bebé; um velho adormece no autocarro; uma senhora troca de sapatos, pés apertados que nem um fole, resmunga - Pele de vitela é assim, enquanto não alarga...; alguém é boa samaritana: - Experimente passar pó de talco. Mais adiante um pai ralha com os filhos, cuidado com as falésias!, mas há quem sonhe,- Realmente um dia bonito, que sossego… Ligam o rádio num carro, solta-se uma valsa de acordéon, 1-2-3-4, 1-2-3-4. Outros aproveitam para comer os restos de um picnic - Ainda sobrou algum ovo cozido? Não, mas tens aqui uma fatia de carne. E cerveja. Não está muito gelada, mas melhor do que nada. Outros começam a impacientar-se: - E afinal, chega ou não chega a ambulância? - E a policia? Quando são precisos nunca aparecem... - Isto ainda vai demorar muito? Fiquei de chegar ao meio dia… Ouve-se finalmente um pim-pom, pim-pom ao longe, a ambulância que chega. Piscam luzes que redemoinham, pim-pom, pim-pom, afastam-se algumas pessoas, um agitar na multidão - é a ambulância! A ambulância! Esquecem-se as fotografias, o barco à vela, os restos do picnic, todos espreitam, querem ver. Saem 2 enfermeiros a correr, mistura-se a cor branca das batas com a pintalgar da roupa da multidão, - Abram espaço, deixem passar! Solta-se a maca, sai outro enfermeiro com um pronto-socorro. Por minutos faz-se silêncio, todos se debruçam, observatório de patologia ao natural. Um dos enfermeiros abana a cabeça: - Muito tarde, hemorragia interna, fraturas múltiplas, se tivesse sido mais cedo... Nada a fazer, morreu. Sussurro de cabeças. - Morreu, está morto. Coitado, morreu. Avisaram a família? Ninguém sabe. A multidão fica silenciosa, ouve-se um Padre-Nosso vindo não se sabe donde. Depois, numa reação em cadeia, todos se afastam. Regressam aos carros, bater de portas, chamam-se nomes, ligam-se os motores. Desligam o rádio, chamam-se crianças, Onde se meteu a Marieta?, arrumam-se coisas. Parte a ambulância, pim-pom, pim-pom, morreu, coitado, morreu, som inútil de urgência para quem vai morto e já não ouve pim-pom nenhum. Começam a deslizar vagarosas, as 2 serpentes de carros e autocarros, só ficam nas bordas, os restos da bicicleta e o fio de sangue no asfalto, já acastanhado. Bom, será que ainda vejo o Museu da Marinha e a cerâmica de Mergsohn? Estamos atrasados. Lá continua o barco à vela no horizonte, sol a bater no pano, sobe e desce na crista das vagas. Há os que teimam que vai para Kristiansum, outros insistem que não, talvez Greystrokh. Mas todos concordam - manter um barco daqueles, dá mesmo muita despesa.

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