Mal sabia eu. Mas calhou - 3 solavancos, 3 epidemias. 1998, Yokohama, psitacose, transmitida pelas gaivotas de Yokohama; 2005, Izmir, sul da Turquia, salmonela, bastonetes em ovos infetados. Sorte a minha – o meu japonês nunca saiu do sushi, o meu turco, mal engatinhava, os alertas de colegas é que ajudaram, ainda que já “depois de”. Fossem como foram, ambas cheiram a cueiros e jardins de infância, comparadas com esta. Tão indefinida; tão espessa de nevoeiro londrino, como sequiosa de cianeto destilado. Tão kafkiana e digna dos 100 anos de Solidão em Tempos de Cólera, como sardonicamente irónica. Tão silenciosa como sulfúrica. (Aviso - quem não aguente o calor de fogão, saia e já, da cozinha). Revejo o que me sobra de mim mesmo - continuo autoconfinado. Vontade própria. Sem desfiar o papel de prata sem rebuçado, trabalho ao lado de uma janela de vidro para um vazio. No teclar do computador, apenas percebo alguém que me espreita lá atrás, no espelho do guarda-fato. No demais, mãos nos bolsos, passeio por um quarto num cubículo vazio. De um corredor vazio. De um universo tão sufocado de perguntas, como sobreiro descascado. Reduzido a este tipo de barba por fazer, na teima de escorropichar um café frio. Tudo igual ao tal tipo que me continua a copiar do espelho – olha comigo, de soslaio, no que esgoela o computador. E depois, espreita sobre o meu ombro, o permanente noticiário da TV. E queda-se também mudo no resto, na engessada ansiedade de espreitar pelo vidrame da janela. Nenhum gato que brinque na rua, nenhum Esteves sem metafísica. Pátios, portões, ruas, casas desertas. Reina a imperturbável, Imperial Majestade 91DIVOC. Lambo as feridas, resignado por conta da terapia dos espelhos. Que não mudam, mas ajudam. Já lá iremos.
Memória de osmose pelos neurónios, só a que li quanto ao tal pavor da peste negra. Esmagou a Europa na Idade Média. Despejou cal viva sobre milhões de sufocados. A tal sequência do MCM: Matou-Contagiou-Matou. Até em Portugal, no extremo do gargalo atlântico, D. Fernandoteve que criar as Sesmarias (maio de 1375)para dar de comer ao país, tal o vazio de enxadas, arados e sementes. Mais as fossas e valadas, abertas para engolir humanoides (literal de “sarcófago”), do que para plantar. Mas houve mais - sentem-se aqui no tripé com Fernão Lopes, Garcia de Resende, Rui de Pina.Contam como poucos, as pestes que abundaram até aos finais do século XVII. Sobretudo em Lisboa (pobre Felipa de Lencastre), Leiria, Aveiro e Évora. Dinastias, reis e cortes refugiavam-se em Alcochete, Sintra, Colares, Almeirim, Coruche, enfim, onde caíssem “as benssãos de ares de muyta pureza y mayor apurado y folgado assossego d´El-rei, nosso senhor”. E vá de acender lamparinas, desfiar rosários e pedir ajuda a quantos santos fossem oragos. Ámen e adiante.
Pergunto ao fulano aqui do espelho, como podia estar alguém preparado. Não sabe. Encolho os ombros e ele comigo. Já pensaram? Sim, quem seriam os privilegiados que podiam adivinhar que a 91DIVOC ia paralisar, fechar, arrasar com as viagens de semicúpio aéreo, chamadas low cost? Com os aeroportos ajoujados de compras inúteis nos freeshops? Com os festivais uréticos de cabeleiras de metro e meio, com caveiras e pulseiras de esqueletos, a porretear guitarras carregadas de volts pelos palcos? Com o snifar sossegadinhamente nos bastidores e cá por baixo? Com o boomerang do sexo swingado, assumido, presumido, alternado, mas sempre biologicamente correto? Com as conferências e mesas redondas, sérias e dignas, onde se mamaram os dias do racismo do antirracismo, se ambos já o eram antes de o ser, se não foram o que são, não podem bem voltar a ser? Com o fritar de pipocas, submersas em toneladas de noticiários, entrevistas, reportagens, 48 sobre 24 horas, tudo sintonizado na peste, endemia, epidemia, idiossincrasia da pandemia, na douta e contraditória opinião de técnicos, investigadores, professores, doutores, diretores, todos íntimos de vírus, flagelos e lipídios? Com a enorme, abissal confusão da Organização Mundial de Saúde, ora ponham a máscara, ora não é preciso, ora lavem as mãos e joanetes com aguarrás, mudem para sabão macaco ou água de rosas? Com os processos judiciais infindos das “infâmias” e “perseguições de pulhice política” que vitimam um impoluto, incorruptível, angélico ex-PM que nunca mentiu, mente ou mentirá, para além do que sempre fez? Com tudo fechado, mas que nem às moscas ficou, porque elas também se confinaram? E com cemitérios, jazigos, talhões, valadas, fornos crematórios a arrebentar pelas costuras, campas, grelhas e chaminés, na saudade de quem nem os viu partir? A 91DIVOC espremeu, achatou, arrasou. De um momento para o outro, nada mais contou. Apagou. Eclipsou. Gude bái.
Há um ano e picos prometi-me não escrever aqui uma linha que fosse sobre este tsunami. Já bastaria o que os meus colegas de tabelionato fossem aqui protestar, desabafar, temer, arrepiar, roer as unhas, engolir em seco, sofrer com os seus santos de casa – deixo a todos, e em especial para Mação, um cálice de conforto, bem hajam.
Cabe a pergunta - então, porque o faço agora? Pelos controversos, auto inversos, repetidos, esmiuçados padrões da fauna humana. Assisti, vejo, ouço, uma confusão ultra babilónica que apanhou de cuecas na mão, a poderosa política mundial; a ainda mais superpoderosa força militar deste e doutros mundos; o infalível escol da ciência do universalmente correto; os inúteis prémios Nobel, Óscares e Pullitzers; o virar de cartas no baralho, adeus de copas a ouros, agora é tudo jokers. Como que até esmoreceu alguma balsâmica fé papal e de pastoreios de quantas igrejas, templos, mesquitas, sinagogas e altares haja. E, coitada, em que embrulhada ficou a pobre da psiquiatria! Resumo da ópera? O que ficou? Quem sobreviveu? O homem, esse desconhecido. Incógnito, anónimo, um simples nº de cartão de cidadão, outro de contribuinte. Varreu-se o que se viu e não se viu ainda – bem-vindas as patologias, enfermarias, agonias. Volta o MCM, Matou-Contagiou-Matou. Mas isso já se sabe. O que interessa são as escalas de leituras e interpretações. Por mim, proponho 3 degraus – Apocalipse, Conspirações e Espelhos.
1. Apocalipse– houve logo quem sugerisse um quadro infernal de Bosch, tempo do Apocalipse, enxofre-se a humanidade. Admito que não nunca me largam as imagens de “O 7º Selo”,mas não, não é o Apocalipse são joanino. É a obra-prima de Ingmar Bergman, de 1957 (genial, mas não vejam. Poupem-se para o The Walldos Pink Floyd. Lembram-se? We don´t need no education / we dont need no thought control, just brink the wall)). Ameias e muralhas esburacadas ou não, o verdadeiro Apocalipse, é peça de Beckett - À Espera de Godot. E há bastantes candidatos: o messias judaico que nunca mais aleluia as lamentações; os calendários aztecas, maias e vedas do fim do mundo; as profecias de Nostradamus e S. Malaquias; os evangelhos fresquinhos, do tal arcanjo no tem-te-não-caias do pináculo, a preludiar profecias para a década que vem, sem falta. Sem esquecer as tais 444 (mil?) testemunhas, haja bancos que cheguem. Não há maneira de acertar um bocadinho que seja, na data do Apocalipse. Uma desonra de marketing. Mas é bom. Porque quando vier, tem que ser em estilo. Único, impecável; em direto; sem anúncios, intervalos e partidos políticos. Sem FMI, ONU, NATO, OMS. Tudo a zero e 100% garantido. Tudo igual num todo igual. Muito estranho, bem sei. Só vendo. Mas que vai durar muito…, lá isso, vai.
2. Conspirações-Mas se Apocalipse não houve até agora, que tal umas teorias de conspiração? Proclamam o óbvio - não há pandemia nenhuma, tudo conspiração das farmácias e laboratórios; trabalhada, municiada, planeada por Bill Gates, OVNIs, UFOs, máfia chinesa, maçonaria, Opus Dei y sus muchachos, cada gosto, seu paladar. Desculpem, a verdade é que milhões morrem como tordos. Sem escolha ou seleção. Logo, se ficção científica até é gira, passo. Leitor, beba o seu café e apachorre-se.
3. Espelhos.Ah, os espelhos, finalmente. O que têm a ver com a pandemia? Voltem comigo ao princípio. 1º, Yokohama, visitar Okakura Kazuko (1861–1913);depois, Izmir, Anatólia, o sufismo de Rumi (1207-1273). Segue-se Leonardo da Vinci (1452-1519) e fechamos com Carl Jung (1875.1961) e Milan Kundera (1929). Um quinteto onde o pensamento é um espelho, tão límpido, quanto um “eu” possa ser. Mas sempre no reverso. Onde Otnemasnep é Pensamento. Adiv, é Vida. E 91DIVOC, é COVID19. Eu explico no próximo velejar, se abarca ainda me deitar a prancha.
PS - Até lá, um abraço de 19 anos. a quem seja verde e branco. E não seja só de Lisboa, Porto, Setúbal, Guimarães e por aí fora. Que seja de PORTUGAL.