Há cerca de um século, talvez um pouco mais, viviam aqueles homens como lobos nas suas ilhas. Nove os homens, cada um de uma ilha diferente, eles também diferentes, cada qual vigiava o mar da sua ilha, e eram também todos lavradores e pescadores. Na exploração das pobres terras resgatadas à rocha negra eram pessoas banais, iguais a todas as outras, dela retiravam a custo batatas, favas, ervilhas, nabos, maçãs e vinho, que era o sustento pobre, mas certo, e a todos animava os serões à volta de uma velha lareira para onde acartavam a lenha para o inverno.
Nesta pacata vida quotidiana, ninguém arriscaria dizer o que também eram: heróis do oceano, para onde partiam assim que algum deles descortinasse a aproximação de uma baleia do cume da sua ilha-montanha. Tinham, com o tempo e o hábito, adquirido a rara capacidade de saber perscrutar o mar através das crónicas brumas, e ver em qualquer movimento do mar ou numa ondulação mais suspeita a promessa de um longo cetáceo, eventualmente um cachalote. E era nessa altura que os nove se encontravam. As chamas e o fumo saídos da lenha a arder, que todos eles também juntavam nos seus pontos de vigilância, ou o som grave que irrompia de uma trompa saída do corno de um bovino, anunciavam aos outros homens que havia baleia à vista. Neste ponto, refira-se que como as ilhas não ficavam muito distantes, em pouco tempo os nove marítimos se reuniam e partiam para as baleias, saindo sempre do cais da ilha que dera os sinais de fumo ou onde a trompa roncara.
Em jovens, todos eles tinham partido um dia em grandes barcos baleeiros norte-americanos que perseguiam os cachalotes e as baleias, e tinham depois emigrado e vivido na América, mas acabavam sempre por regressar, como que puxados por um íman, para os seus pequenos mundos insulares, as ilhas eram a única peça de puzzle que encaixava sem necessidade de “instruções” na sua mente. Mas tinhalhes ficado também para sempre o gesto, e o gosto heroico pela caça às baleias, as saudades daquela corrente de adrenalina que sentiam de arpão em punho e a cambalear no barco, o sentimento de que ali viviam entre a ideia da vitória, que se celebrava na taberna e se pagava com o fígado, e a da morte, que se procurava apagar da mente. Entre os nove, por uma razão ou outra, e cada um da sua forma, todos se destacavam. José Guilherme, por exemplo, antes da faina, declarava sempre aos demais que algo lhe dizia que naquele dia morreria…
− Sinto que é hoje o dia em que vou morrer…
− E nós sentimos que isso vai ser mesmo verdade…, dizes isso sempre e até dá sorte, − ironizava um dos companheiros da baleação. Há mais de 40 anos que o veterano das baleias dizia aquilo, era quase um ritual que devia ser cumprido, e, entretanto, o velho Guilherme já ultrapassara nesse ano os 90… Os outros sorriam, porque, enquanto contassem entre eles com o Samuel, a contar anedotas sobre religião, malucos, viúvas, deslealdades locais e a anatomia feminina mais sugestiva, em vernáculo e com pausas que só ele sabia fazer, morrer ali, não sendo nalgum azar da baleação, só se fosse de riso.
O mais novo de entre eles, e também o mais estranho, encontraramno sozinho um dia, e salvaram-no depois de ter sofrido um trágico naufrágio em que sucumbiram todos os companheiros. Falava num idioma indecifrável, no qual perceberam mais tarde que só pronunciava a primeira parte das palavras, falando assim muito rapidamente, não sendo fácil às outras mentes acompanhá-lo. Até na sua trompa, os roncos parecia que vinham sincopados, cortados ao meio.
No baleeiro todos se entendiam com a linguagem dos “camones”, tinham-na aprendido nos barcos e, incisiva, quase primitiva e muito rápida era a que se mostrava mais adequada aos ritmos instintivos, aos gestos felinos e golpes certeiros em plenas batalhas no mar com as baleias. Mas os pescadores também tinham as suas línguas nativas, herdadas dos pais e dos avós, e que só se falava numa única ilha, como uma ave que só aí pusesse o ninho ou um peixe, que nesses fundos desovava. E, entre os nove, nenhuma língua era igual a outra, nem talvez pertencessem à mesma família. Talvez as correntes muito perigosas e temidas nos canais que separavam as ilhas as isolasse ainda mais e os ilhéus evitassem ir de umas para as outras… Assim mantinham o seu falar.
Da sua língua bastante étnica e quase em extinção, todavia, não prescindiam os pescadores. Com o seu inglês, da caça à baleia ou da América, nunca tinham sentido pertencer a coisa alguma, mas, com o falar do dialeto aprendido na ilha com os avós, era diferente. O seu dialeto, ou idioma, até parecia ser um pouco bizarro e fora deste mundo, mas era nele que se sentiam como pertencentes a algo, algum grupo ou a uma comunidade, e não a outras, e isso aquecia os seus corações tribais. As suas falas de ilhéus dava-lhes identidade, carácter e alma, coisa que nunca haviam encontrado quando armados de arpões ou lá pelos Estados Unidos a beberem coca-colas, comerem hamburgers carregados de ketchup e a consumirem pacotes de batata frita à frente da TV. Cada língua parece corresponder a uma forma de pensar e de sentir, até talvez molde as ideias e atitudes dos seus falantes, e os seus dialetos, cada um vivendo na sua própria ilha, apoderara-se deles, como os genes dos indivíduos. A sua língua era o seu povo, e a eles cada um dos “nove” regressava depois de mais faina, e uma baleia abatida e trazida para o cais para ser cortada e dividida.
Um dia, o Governo, pressionado por outros países, decidiu proibir a pesca à baleia naquele arquipélago, e os nove nunca mais voltaram a falar na sua linguagem dos “camones” nem a partir atrás dos grandes cetáceos. Mas o Governo não proibira que pudessem ficar de vigia, e continuar a acender as fogueiras. Era isso que todos faziam, só deixando de as acender ou de tocar as suas trompas quando morriam de saudades. E quando já nenhuma fogueira se avistava do coruto das ilhas, José Guilherme partiu só no seu pequeno barco, rebelde, à procura de um bom cachalote. Aquele vazio estava a matá-lo por dentro, era no mar que sentia a adrenalina e se sentia vivo…