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19 JUL 2021
OPINIÃO | "A Menina Isabel", por Anabela Ferreira
Por Jornal Abarca

A nossa revista faz anos este mês. E é certamente com algum carinho que todos os que nela colaboram sentem este aniversário. Porque realmente o que é um aniversário? É, claro, a comemoração da existência. O podermos estar, como for possível, e dizer aqui estou e estou feliz por existires.

Isto ocorre com um projeto e obviamente, de forma mais reforçada e emotiva, com quem nos rodeia e de algum modo estimamos ou amamos.

De facto, até nem é necessário que se continue a viver para continuarmos a existir.

Chamávamos-lhe todos menina Isabel. Não era uma criança a quem dávamos esta forma de tratamento. Era uma senhora já de idade avançada que vivia sozinha. Transmitia carinho e fragilidade, vivia numa pequena casa da aldeia junto à estrada que conduzia à mercearia. Muitas vezes vinha ao postigo que ocupava o quadrado superior da velha porta de madeira cumprimentar pelo nome quem passava. Conhecia todas as vozes e identificava-nos os passos. Se precisava de ajuda para algo ou de um recado da mercearia ou outro qualquer, pedia e todos prontamente acediam. Muitas vezes, em criança, acrescentei à lista das compras materna mais um pedido para entrega a meio caminho. Aviar recados à menina Isabel era algo que toda a gente fazia de forma tão natural como respirar. Ela nunca saía de casa. Era uma autorreclusão pela sua situação, pelo receio, pelo hábito…

Adulta e já com uma certa idade nunca a vi além do seu portal, enquanto ali viveu. Muitas vezes lhe fiz companhia, tal como outras crianças. Conhecia a sua pequena casa ainda de chão de terra batida, como eu só vira a sua, quase como se lá habitasse. Sabia onde tinha os objetos de uso quotidiano e poderia lá circular de olhos fechados sem me perder. Sempre me fascinou a forma como lidava com os fósforos ou como enchia uma cafeteira colocando o dedo no bordo interior para sentir o nível do líquido.

Face enrugada e simpática. Cabelo grisalho, apanhado em totó, repuxado atrás num alinho espartano. Vestia invariavelmente de preto, solteira, deveria ser luto pelos seus falecidos pais. Contava-nos histórias e tagarelava bastante. Um dia, o irmão que morava em Lisboa construiu “o prédio”, como lhe chamavam, que é como quem diz, uma casa grande de primeiro andar, distinta da maioria das casas da aldeia, portanto. Esta casa diferente até pela cor amarela distava de poucos metros da sua primeira habitação e para nós, passantes, era um desvio mínimo em relação à estrada que usávamos mais. A menina que era senhora foi habitar o rés-do-chão e é dessa época que tenho memória da sua cadelinha Boneca que passou a ser mais um atrativo para a visitarmos e para com ela passarmos tempo. Outro motivo acrescido de visita dessa casa eram alguns brinquedos diferentes como uma casinha de bonecas da sua sobrinha que vinha espaçadamente visitá-la com o seu irmão.

Não deve ter sido fácil, para uma pessoa privada do sentido da visão, esta adaptação a uma casa nova, maior, diferente, com novos espaços e objetos. Contudo, se receio houvesse, nunca o demonstrou e parecia que sempre ali tinha vivido. Agora até se aventurava a ir até mais à frente no quintal estender uma roupa no cordel, pois a casa tinha um terreno grande murado, ou à frente da casa abrir-nos o portão.

Os anos passaram. Um dia faleceu.

A casa ainda lá está. A família que habita em Lisboa ainda vem à aldeia esporadicamente.

Sempre que faço a reciclagem na ilha, próxima da casa amarela e dos lavadores públicos, recordo aquela idosa que nunca deixou de ser menina, a sua delicadeza e fragilidade, a sua paciência e o seu carinho tranquilo, e sei que, onde estiver, terá a sua cadelinha amarela de pelo curto e passar-lhe-á com a mão pelo dorso num afago contínuo.

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