Os passos do meu pai no corredor, pausados, como se medisse o soalho, a inusitada hesitação, temor do inevitável. Minha avó saiu do quarto e meu pai disse-lhe: a mamã vai ser operada na semana que vem.
Ficaram assim, a olhar um para o outro, calculando prazos de vida, sofrimentos, futuros por viver, enquanto os pavões azuis do papel da parede soltavam gritos alucinados e sinistros. Para evitar que os ouvisse minha mãe mandou-me comprar um gancho de cabelo à capelista.
Mas eles voltam sempre, soltam da parede da minha infância os seus gritos que me atemorizam e inquietam profundamente. Não gosto de tais aves. E são belas, esplendorosas. Sempre as associei à morte. Nunca me habituei com a morte. Para que se vive?
Anos e anos no espaço mais tenebroso dos hospitais e nunca percebi porque se morre. Ou para que se vive.
A avó ainda viveu em África por quatro anos e voltou para se despedir dos pavões azuis da sua sala. A minha mãe continuou a inventar recados para eu fazer, mas nunca conseguiu que esquecesse aqueles gritos agoirentos que todos os pavões soltam anunciando desgraças.
Dentro de mim… os pavões…
À minha mãe
As ilusões semelham-se a um colar
De pérolas alvíssimas, de espuma.
Se o fio que as segura se quebrar,
Caem no chão, dispersas, uma a uma.
Caem no chão, dispersas, uma a uma,
Se o fio que as segura se quebrar;
Mas entre tantas sempre fica alguma,
Sempre alguma suspensa há-de ficar.
Das minhas ilusões, dos meus afectos,
Longo colar de amores predilectos,
Muitos rolaram já no pó também.
Um só dentre eles não cairá jamais:
Aquele que eu mais prezo entre os demais,
— O teu amor santíssimo de mãe.
Augusto Gil(1873 –1929)