Aquele arquipélago era feito de ilhas ermas e malditas semeadas pela atividade demoníaca de vulcões nascidos no oceano, e dessas ilhas, a mais pequena e desgraçada ficava a uma distância considerável de todas as outras, distância que aumentava ainda mais porque era tormentoso e sempre com vagas brutais o mar que a separava das demais. Essa ilha era um mundo a quatro cores: preto, branco, azul, verde. Poucas mais haveria. Era preta, pela sua condição vulcânica e pelos vómitos de lava que lhe deram a origem. E também pelo negrume e pela solidão que a cobria, a ela e à vida dos seus habitantes, que eram cada vez menos, porque muitos haviam emigrado para onde a vida fosse menos monótona e madrasta, e outros haviam também partido para a terra onde o silêncio era absoluto e já irreversível. Branca, pelos nevões que caíam silenciosamente, parecendo trazer com eles duendes, gnomos e outros seres da imaginação, e pelas ovelhas que se disseminavam bucolicamente por todas as colinas onde as casas eram também baixas, alvas e imaculadas. O azul vinha dos infinitos do mar, do céu, das lagoas e de todas as aves que a procuravam. E o verde, dos musgos das falésias a pique, dos pastos, das searas de centeio e dos reflexos que ofereciam.
Na ilha, a dureza quase desumana da vida, onde ninguém chegara a rico, mas também ninguém permitia que os outros se fizessem pobres, tornara as suas criaturas particularmente humanas. Parecia que Deus nunca passara por ali, mas isso não as impedia das crenças plantadas no seu subconsciente, da sua devoção e dos seus cultos aos domingos na igreja da aldeia, que edificaram pedra a pedra, cada uma arrancada às rochas do vulcão e cimentaram com fé pura e com as mãos nervosas e gretadas pela aspereza do frio. Não tinham médico, nem enfermeiros, nem pescadores, nem professores, nem padeiros, nem pastores, nem polícias, nem prisões, nem bancos, e ser juíz era função que desconheciam em absoluto. As suas raras desavenças resolviamnas com brevidade e em acordo, da mesma maneira natural com que coziam o pão num forno comunitário, faziam queijos, cardavam a lã ou tratavam das doenças (com o conhecimento empírico que tinham de todas as ervas da ilha, as mesmas que davam sabor ao leite, ao queijo e à vida), repartiam a água sem brigas nem azedumes. E, não havendo nenhuma dessas profissões (ou missões), todos eram um pouco delas, e de tudo sabiam um pouco, que partilhavam para que toda a comunidade possuísse esse saber – pois este tem a qualidade de quanto mais o dividimos (partilhamos), mais aumenta.
Todos tinham um pouco de médico, advogado, carpinteiro ou pastor, mas ninguém roubava, matava ou era preso, porque também não havia prisão, nem os ilhéus sabiam o que isso era ou para que raio servisse, pois nem fechaduras as suas portas conheciam. Eram tudo e, além disso, pescadores no mar e agricultores na sua própria courela lambida por meia dúzia de ovelhas, que depois ordenhavam como num ritual diário e bíblico. Aliás, só o padre se assumia como único, e a ele os ilhéus levavam metodicamente o que eram capazes de fazer e ele precisava. Era assim porque viver com um padre trazia-lhes a paz de estarem em harmonia com o Cosmos.
O velho e já gasto Saul tornara-se assim sem nunca sair da ilha. Nunca sentira necessidade de conhecer outras paragens, de emigrar, como fizeram muitos insulares, sobretudo depois do pavoroso sismo em que o sino de bronze da torre da igreja, que tocava a rebate nas grandes tragédias, tombara com estrondo e rachara com a queda. Caminhava descalço entre os carvalhos ou pelas ruas de pedra, às vezes com neve, e não tinha dinheiro nos bolsos, mas isso ali não era vergonha, ninguém tinha sapatos e não havia moedas, nunca houvera.
Ali, Saul, o velho lobo-do-mar que nunca se separava do seu barrete negro, sabia tudo o que havia para saber e, para sermos sinceros, tudo o que era preciso saber. Há muitos anos que ninguém chegava à ínsula, era como se ela não existisse, dali só partiam… Ele tornara-se na biblioteca que não havia, era fonte de respeito e inspiração, e era a ele que todos recorriam para se aconselhar. Nas desavenças, ouvia os contendores, dizia duas ou três palavras sóbrias e ponderadas, de acordo com o seu código de bom senso, eles aceitavam e partiam em paz e amigos.
− Quando somos benévolas connosco mesmo, podemos reconciliarnos com todas as pessoas da ilha −, costumava dizer Saul nestas alturas, sabendo-se que a ínsula era todo o mundo. Fizera de tudo na sua peregrinação pelas décadas que vivera, era capaz de contar epopeias extraordinárias de cada uma delas, e agora todos reconheciam nele o guru sábio e influente.
− Se nós nos virmos como gafanhotos, os outros vão ver-nos como gafanhotos, se nos virmos como águias-reais, todos nos respeitarão −, dizia, e todos compreendiam e concordavam.
Saul acostumara-se à sua idade, a ir para a praia, tocava uma flauta que todos ouviam, e ficava lá a contemplar o mar e a chegada ou a partida dos marítimos, a ouvir as suas histórias, e a sentir todos aqueles aromas que acordavam na sua mente as memórias dos seus barcos de pesca e das suas tripulações. Os pescadores traziamlhe o peixe acabado de pescar, cavala, chicharro, algum cherne ou tamboril... Quando não chegava ninguém, e só a doce música da flauta e a brisa do mar lhe faziam companhia, Saul percorria a praia e apanhava alguns caranguejos, que seriam a sua próxima refeição com o café que preparava.
Com o decorrer dos anos, Saul começou a notar que cada vez chegavam menos barcos, e eram menos os pescadores que partiam, tal como havia cada vez menos braços na bigorna do ferreiro ou na ordenha, e menos gente na aldeia, fossem nos pastos, nas ruas e até na taberna, onde se trocava leite por vinho, e queijo por pataniscas e outros petiscos. Sempre falara com os cães e algum animal que encontrava, mas isso agora já não era um traço do seu carácter, mas a pura necessidade de comunicar.
E chegou o dia em que Saul, por tanto resistir à migração e à morte que puxaram pelos outros, era o único ser humano que permanecia na ilha. Só pedras, vegetais, os sons das gaivotas e a rebentação do mar. Já ninguém ficava a ouvir a sua flauta, nem ia pedir-lhe conselhos ou a sua opinião, e cada segundo parecia-lhe uma dolorosa eternidade. Um dia, logo de madrugada, pegou num dos barcos que ficara acostado ao cais da ilha, trouxe alimentos para alguns dias, içou-lhe as velas e partiu. Iria para onde o vento o levasse, mas sabia que já não queria regressar à aldeia onde já só ouvia os ecos de si, porque isso seria morrer em poucos dias. A luz fresca da manhã, filtrada ainda por uma auréola azul da noite, prometia muito. E, aos 90 anos, Saul desamarrou o barco para a viagem, a sua bela sociedade simples e igualitária parecia não ter resistido à realidade, a que os homens pareciam preferir… Iria para onde soprasse o vento e o seu destino.