Estava a crónica pronta a ser enviada e eis que amanheceu a notícia fatal – morreu Otelo Saraiva de Carvalho!
E mudou tudo. Um vento de antigamente, uma maré de recordações sublimes, um sonho que já desbotou há muito, mas regressa com a mesma vivacidade dessa época de esperança e felicidade, canções, abraços.
Quando cheguei de Lisboa para ir votar no dia seguinte, estava ela a assobiar com um panfleto na mão, o panfleto da candidatura de Otelo.
Ela que só teve direito de voto depois do 25 de Abril; ela que fez circular Avantes em papel fininho, achando meios rebuscados para os passar; ela que eu vi com o pai preparando encomendas de roupa e medicamentos para o João que estava no Tarrafal e no final a entreolharem-se na eterna suspeita – seria entregue?; ela que assistiu a ao funeral daquele rapaz da Marinha Grande que vinha aos bailes da Fervença e morreu na prisão. Quando o caixão chegou, a família exigiu que fosse aberto, o rapaz, vidreiro de profissão, vinha de luvas! Ela estava no grupo que lhe retirou as luvas e viu que lhe tinham arrancado as unhas.
Ela ia votar Otelo.
Pela liberdade!
Pelos Joões que penaram nos tarrafais, nas prisões, na vida cinzenta, pela claridade e frescura daquela madrugada em que aquele homem orientou estratégias para que outros homens findassem a obscuridade.
Deu-nos apenas a possibilidade de sonhar. O sonho esboroou-se.
Não era um deus, era um Homem.
Que viva para sempre!
Viva o 25 de Abril de 1974!
Retrato do Herói
Herói é quem num muro branco inscreve
O fogo da palavra que o liberta:
Sangue do homem novo que diz povo
e morre devagar de morte certa.
Homem é quem anónimo por leve
lhe ser o nome próprio traz aberta
a alma à fome fechado o corpo ao breve
instante em que a denúncia fica alerta.
Herói é quem morrendo perfilado
Não é santo nem mártir nem soldado
Mas apenas por último indefeso.
Homem é quem tombando apavorado
dá o sangue ao futuro e fica ileso
Ary dos Santos (1937 – 1984)