Desde que me lembro sou um ávido leitor de histórias sui generis que, por um outro motivo, se distinguem da normalidade. Nos últimos anos comecei, literalmente, a coleccioná-las. Tenho um ficheiro onde constam mais de cem histórias que me despertaram a atenção por se diferenciarem do normal.
Partilho aqui uma convosco de forma resumida: em 1995 o norte-americano McArthur Wheeler, com 45 anos, decidiu assaltar dois bancos sem qualquer tipo de disfarce, apenas besuntando a cara com sumo de limão. No final desse dia foi facilmente identificado através das imagens de vídeovigilância e declarou que esfregando o sumo de limão na cara acreditava que ficaria invisível.
Essa ideia surgiu depois de ler sobre a reacção do ácido com o calor. Convencido de que tinha encontrado um plano infalível, arriscou a própria liberdade. Parece idiota dito assim – e se calhar é mesmo –, mas este é o princípio básico que rege “os homens de um livro só”, como diria São Tomás de Aquino.
Isto despertou a atenção de David Dunning e Justin Kruger, dois sociólogos norte-americanos, até porque o assaltante não parecia louco ou desprovido de racionalidade na sua forma de agir, apenas se sentia com excesso de confiança: a sua ignorância parecia-lhe um mundo de conhecimento. Assim, os dois desenvolveram um estudo a que deram o nome de Efeito Dunning-Kruger: “Não sabemos o que não sabemos. A nossa ignorância é invisível para nós. Portanto, aqueles que sofrem de ignorância - e isso somos todos nós, em algum momento, e para algumas pessoas a maioria do tempo - sofrem realmente de superioridade ilusória, porque não conseguem reconhecer quando o seu conhecimento é inferior”, explicou Dunning. Ou seja, pessoas com excesso de confiança são incapazes de reconhecer que não dominam certa temática, e assim criam a ilusão de que estão correctas mesmo que isso choque com o conhecimento de quem melhor domina o tema.
Isto leva-me aos dias de hoje. Infelizmente, estamos rodeados de “homens-limão”, pessoas sem o mínimo conhecimento científico, mas que se sentem capazes de opinar sobre algo tão complexo como um vírus e uma pandemia. Nas redes sociais esse tipo de seres abunda: sabem tudo sobre vacinas, mas não sabem distinguir “há” de “à”. São pessoas que recusam uma vacina em detrimento de outra, ou qualquer uma, porque “ouvi dizer”, “li num site” ou “conheço alguém que”. E argumentam, rebaixam e gozam porque se sentem super confiantes sobre algo que não dominam minimamente. É este poder da ignorância que lhes dá a ilusão de dominarem o tema.
Essas pessoas tornam-se, sem se aperceberem, numa ameaça à democracia. Não que tenham essa intenção. Mas porque são veículo de transmissão de mensagens enganadoras e, consequentemente, propaganda política. Criam, aos poucos, a sensação de que vivemos em ditadura, de que esta democracia é falsa e que já chega de sermos todos enganados: porque eles sabem que a pandemia é uma farsa que foi criada para nos dominarem. Aqueles seres iluminados que tiraram mestrado na Escola do Facebook sentem-se suficientemente potentes para desafiar quem estuda a ciência diariamente há décadas. Umberto Eco dizia, sobre estes, que “as redes sociais dão a legiões de idiotas o direito de falar para a comunidade quando antes só falavam num bar depois de um copo de vinho”. Os idiotas tornaram-se perigosos através da sua ignorância.
O objectivo de quem aproveita estes ventos é claro: dividir a opinião pública e extremar as posições. Assim, sem meio termo, criam-se inimigos e a narrativa de que quem manda nos quer destruir a vida ganha força. Sai reforçado quem promete acabar com esta pouca vergonha que, no fundo, é apenas a vida a acontecer.
Não escrevo nada de novo. Em 2005, Pacheco Pereira escreveu na Sábado: “Há muitas probabilidades de termos uma pandemia de gripe com uma variante viral muito agressiva (...) Para a democracia, para a civilização, será um teste poderoso”.
A democracia, por permitir que a ignorância tenha voz, arrisca-se a ser dominada. E, por mais que gritem que vivemos em ditadura, não vivemos. Talvez tenham de aprender isso quando provarem o sabor da ignorância. Sabe a amargo, como o limão.