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15 NOV 2021
OPINIÃO | "Bom Humor em Universos Desconfinados", por José Alexandre
Por Jornal Abarca

Como já disse antes, arregacei as mangas e decidi limpar as gavetas do que me sobrou do confinamento. Não foi fácil. Nada fácil passar o aspirador pelas fobias e vinagre pelas ansiedades; desfazer as teias de aranha de lexotans, duloxetinas e outros embalos antidepressivos que amigos, colegas e vizinhos engoliam e ainda o fazem, dia a dia, religiosamente, como teshbis de Maomé ou contas de Buda. Tudo difícil até finalmente repassar a chave a abrir as grilhetas que apertavam pés e pantufas entre 5 paredes - as do quarto ou sala, mais a da goela escancarada da rádio e TV, a vomitarem necrologias e pareceres médicos, quase de hora a hora. Um toque-toque, feito jogo de varapau que foi e voltava, sem que as costas folgassem. Enfim, a verdade é que as gavetas estão mais ou menos limpas e arrumadas. Mas nada convidadas para nova tentativa de me enjaularem para bem comum. Resumindo, tempo de deitar contas à vida, de saudar Janus, o tal deus romano de 2 caras: uma para o que foi; outra para o que virá. Hora de rever onde errei, fingi que esqueci; embalei pura fantasia; e, vá lá, o que aprendi. Aqui deixo 2 lições extras. E que foram bem claras: nunca perder o sentido de humor - pelo contrário, regar-lhe a horta de alma aberta. E saber situar-me na parte do universo que me cabe. Graças a um mestre que é Mestre.

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Primavera de 1828, reina D. Miguel. Fervilham guerrilhas pelo norte de Portugal, no preâmbulo da guerra civil. Luís de Azevedo, fidalgo das altas Beiras e Montes, senhor de Romarigães, decide ir a Mesão Frio, visitar umas terras que herdou. Aconselham-no a atravessar o Marão. Tempos difíceis e perigosos, pelo sim, pelo não, faz-se acompanhar de um grupo de clérigos que vão lá pregar a Semana Santa e aproveitam a boleia, fora um séquito de homens de escolta e estribeiros nas montadas, 2 carroções puxados por mulas cheias de paciência, com bagagens mais carga de enchidos, pães, tortas e vinhagem tinta, que ninguém é de platina. Escolta armada para o que der e vier, que isto de escalar o Marão era coisa para uns 3 dias e assaltos o pão nosso de cada curva de caminho. Fila indiana, casco a casco, figura a figura contra a rocharia de branco empinado, só um dos padres é que vai na carroça, a fingir que lê o breviário, de olho posto nas garrafas. Na 2.ª noite, Luís de Azevedo não encontra pousada certa, tem que pernoitar nos claustros de S. Domingos, onde os frades o deixam compartilhar a cela com o prior. E aí começa o pesadelo, mal se sopra a vela da candeia e se rezam as Ave Marias a Nossa Senhora da Boa Noite:” opior acontece - é que[o prior]ressonava mais alto, variado e plangente que órgão da vigília da Paixão. Fosse obra de esturrinho, com meia obstrução das fossas nasais, o certo é que dentro daquelas ventas monásticas, ora mugiam 10 gaitas de foles galegas, ora assobiava a gaitinha de palha mofareira”,estridente, chinfrinada e repetida. E até tinha uma componente musical: o ressonar pintalgava-se em verdadeira pauta: “apartitura entrecortava-se de solos que estrugiam pelo claustro e deviam, transbordando para o exterior, extasiar céus e terra. “E só com brevíssimas compensações -” quando no decorrer dum Piano Pianíssimo, (…)  Luís de Azevedo conseguia pregar olho, de repente, a trompa prodigiosa do prior, soltava um Larghetto com notas de oboé e rabecão, e lá se ia o regalado soninho.”Pelos vistos, um concerto a puxar para o barroco, talvez mesmo com a sua pitada ressonada de gongórico, hora após hora, minuto atrás de minuto, sabe-se que rói os nervos de qualquer um. Resumo?  “Às 6 horas da manhã, quando começou a luzir a claraboia (..) e um cochicho [=calhandra]veio para os loureiros do claustro soltar o seu solfejo, ainda andava ele aos tombos com o travesseiro.”  Luís de Azevedo explode, desiste, enfuria as redes de veias e artérias, veste-se, a amaldiçoar por dentro e por fora, todos os enxofres infernais:- Tantas labaredas no Inferno consumam este prior como de lume gastaram os frades deste convento, com os autos-da-fé! Raios partam a vida!Outra noite, em claro!”. Não preciso muito latim para identificar que a narrativa da insónia bem-humorada é de A Casa Grande de Romarigães”,de Aquilino Ribeiro,Capítulo 14.º, Círculo dos Leitores, págs. 142,143. Uma leitura regalada, a aligeirar e muito (ainda por cima, ao ar livre, em pleno Marão), uma noite que me parecia estar também condenada a ser escravizada ao confinamento. Grande Aquilino! Não recebo comissão, mas se não leram, leiam esta e as demais Terras do Demo. Por mim, deitei-me de garras e bofes às páginas, felizes os que descobrem a terra onde nasceram e mais não pedem. Sabia que Aquilino era magistral, mas não tanto assim. Os anos ajudaram-me a filtrar a maneira, quase milímetro a milímetro, como semeia frases feitas, ditados, provérbios, achados, aguarelas a óleo de povoados de região sem fronteiras, como se conhecesse todos os talos de relva, todos os roliçais de pedras e penhascos. Só Camilo consegue esta minúcia, milheirais, parreiras e verdes é com ele. Mas é triste ver como estão ambos um tanto esquecidos. Talvez porque descrevem em detalhe e com alma muito lusitana, um Portugal tão real, tão verdadeiro, tão autêntico, que dificilmente configura o “social e politicamente correto”. Mal de que também enfermam as obras agora empoeiradas de Herculano, Garrett, Raul Brandão, Ramalho, Fialho, Lopes Vieira, Alves Redol, Régio- a lista dos desterrados, decretada, ano sim, ano sim, pelos autos-da-fé do Ministério da dita Educação, é bem longa.

Recordo nos meus tempos de entrada na Faculdade, a controvérsia acesa pelos corredores - quem deveria ganhar o 1.º Nobel de Literatura em língua portuguesa: Aquilino ou Torga? Era um 50/50, uns acusavam Aquilino de só poder ser lido com um dicionário Beirão-Transmontano (o que se consegue em 1988 -Glossário Aquiliniano. Centro de Estudos Aquilinianos); outros magoavam-se com a brusquidão sulfúrica da Torgal figura. Curioso pensar que a geografia humana de Sernancelhe (terra de Aquilino) a S. Martinho da Anta (terra de Torga) não é tão diferente ou distante assim. Muitas teses de doutorada maestria terão deslizado pelas águas do Douro - na minha campónia humildade, acho que são complementares. Torga nasce em 1907, tem Aquilino apenas 22 anos (nasce em 1885); ambos saracoteiam as batinas por seminários, livram-se deles a tempo; um enfuna as velas para o Brasil, outro, politiza-se pela baixa lisboeta à espera da República; ambos com uma tremenda vontade de osmose portuguesa, de roer um naco da broa de liberdade, sem cortadas de ditames e ditaduras. Por mim, pensei (mas calei) que eram 5 e não só 2, os nomes que mereciam o tal Nobel em Português: para além da dupla prata da casa havia, Érico Veríssimo, Jorge Amado e Drummond de Andrade. (Nota nada marginal: ironia, das ironias, foi preciso chamar FDP, a Deus, para se engordar o saldo bancário de escrita de um português, com coroas suecas. Mas não quero ser injusto, afinal nem sei como estava o câmbio para Euros).

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E quanto a Universos? Fico por casa. Nem saio de abarca. A primeira coisa que faço quando recebo um novo número é sempre ir direto à crónica de Máximo Ferreira,A CAMINHO DAS ESTRELAS.Não sei se tem o título académico de Mestre - se o tem, é mais do que justo e merecido. Se não o tem de selo, lacre e carimbo, não precisa dele. Nadinha. Mais que provado que o é, por direito natural. Graças a si, recuperei constelações (incluindo a do Cisne, difícil de encontrar, admito); cometas, meteoros com a tal chuva periódica; eclipses, satélites de Júpiter (58? 63? Quantos? Ah, sim, e Europa, a incógnita de haver água para a sobrevivência transplanetária); buracos negros, quasares; enfim, enxárcias de galáxias. Caro colega de escrita, preencheu e preenche muitos vazios e perguntas. Ajudou-me a encurtar os tempos de espera do fim da pandemia - lá por cima, é tudo tão gigante, e nós tão átomos de bactérias, que por vezes nem penso em vacinas e menos em necrologias. Afinal e pensando bem, “todo o macro universo tende a ser micro, como o exatamente oposto, também o é”.  MestreMáximo Ferreira.de novo, muito obrigado.    

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