Para o Rui de Souto Barreiros com amizade e admiração
Nunca escrevi sobre doentes, hospitais. Por nada em especial, nem ético, simplesmente esse mundo não interfere com a escrita. E sinto-me bem assim. Porém, há sempre uma excepção, existe um caso que resume a minha vida profissional e esse vou relatar em traços muito largos. Porque é uma glória? Se calhar a única…
Uma tarde, apareceu-me no consultório um amigo de juventude, uma dessas figuras inesquecíveis pelo sorriso bom, a figura dúctil, a simplicidade cativante duma simpatia única. A pessoa mais simples que conheci e tinha razões para vaidade porque foi um nome grande numa actividade em que não é fácil brilhar. Acompanhava a mulher, que era a verdadeira doente, para eu observar. Enquanto observava a senhora, reparei que ele mal respirava, que talvez não o reconhecesse se não soubesse de antemão quem era, cinzento e dispneico, pesado.
Finalizando a consulta, aconselhei o que me pareceu razoável, mas disse para ele: quer passar aqui depois de amanhã? Ele anuiu, mais pela simplicidade da sua bonomia que por concordar comigo. Talvez as duas coisas. E, no dia combinado, compareceu e confessou que não se sentia muito bem nos últimos tempos. Concordámos que subir a um primeiro andar não era fácil, que o seu peso não ajudava nada, rimos muito, fiz alguns exames e não foi difícil a conclusão que eu temia.
Nessa época, o mundo era mais pequeno e os colegas da mesma área conheciam-se pela voz e arranjavam sempre uma solução. Desligado o telefone, apresentei-lhe o meu conselho: ia ao hospital no dia seguinte e seguiria a orientação que lhe fosse proposta. Ele aceitou. E foi ao tal hospital no dia seguinte e foi operado no dia a seguir. Durante anos segui-o na consulta. Pontual, disciplinado, perdeu peso, tomou comprimidos, atravessou desgostos e complicações até que as consultas rarearam, e o perdi de vista.
Na última Feira do Cavalo antes da pandemia, terminado o filme policial, virei para um canal generalista que estava a transmitir em directo da Golegã. O Arneiro apinhado de gente, uns holofotes fixados num pequeno palco, um trino de guitarra. E, de repente, dou-me com ele, sozinho, a cantar o fado.
Valeu a pena!
“Dos amigos
Gosto dos amigos
Que modelam a vida
Sem interferir muito;
Os que apenas circulam
No hálito da fala
E apõem, de leve,
Um desenho às coisas.
Mas, porque há espaços desiguais
Entre quem são
E quem eles me parecem,
O meu agrado inclina-se
Para o mais reconciliado,
Ao acordar,
Com a sua última fraqueza;
O que menos se preside à vida
E, à nossa, preside
Deixando que o consuma
O núcleo incandescente
Dum silêncio votivo
De que um fumo de incenso
Nos liberta".
Sebastião Alba (1940-2000)