Home »
29 NOV 2021
CONTO | "A Ética da Montanha"
Por Manuel Fernandes Vicente
Os dois homens tinham uma amizade com anos, verdadeira, eram realmente diferentes na sua têmpera, mas não podiam passar um sem o outro. Tristan era psicólogo do comportamento evolucionista, Vardan arqueólogo de naufrágios, mergulhador profissional nas profundidades dos mares e das suas incertezas. Um procurava o remoto e a verdade humana nas eras do tempo, o outro no fundo dos oceanos. Um dia ouviram falar de uma longínqua montanha muito alta, cujo cume estava reservado apenas aos eleitos que conseguissem aliar agilidade com coragem e a capacidade de, pensando rápida ou lentamente, decidir sabiamente em todas as circunstâncias e nas muitas dificuldades ossudas que a aventura da sua subida iria mostrar-lhes. Um tempero de loucura também ajudaria. E decidiram que a haviam de enfrentar. Ambos tinham o espírito da aventura e de independência no sangue - estes eram, aliás, dos poucos traços de carácter que os unia - e, se a montanha estava lá, era para eles a alcançarem e atingirem o seu pico, um dos mais altos do mundo.
 
O desafio era estimulante, mas, na verdade, a experiência de ambos a subir montanhas íngremes e nevadas e a enfrentar paredes verticais e ameaçadoras era nula. E, por isso, ambos se prepararam física e mentalmente durante semanas, escalando paredes ásperas e ganhando outras competências com um curso de alpinismo online. Enquanto isso, preparavam os bens e a logística para a expedição, de modo a evitar que ela se transformasse numa tragédia fútil, adquiriram o que era considerado necessário -  alimentos sólidos e líquidos (levados de casa uns, outros obtidos na região, como carne de búfalo de conserva, alimentos liofilizados, mel, compotas e chás), mapas, GPS, telefones-satélites, um computador portátil, comunicações por rádio, o boletim meteorológico, máquina fotográfica, cordas fixas e de segurança, um bastão de esqui e piolets, mochilas, uma tenda leve, saco-cama, painéis solares, oxímetros… 
Cada um partiria da base, mas de locais opostos, e subiria pelo seu flanco, num trekking apenas acompanhado por um ágil guia sherpa. Os dois nativos carregavam boa parte dos equipamentos, eram raposas velhas no conhecimento dos meandros das subidas entre rochas, gelo, glaciares e medos, que os acompanhariam até certa altura, um campo base mais avançado, e depois ficavam entregues a si e à sua própria estratégia. Antes, os carregadores recordaram-lhes um princípio sagrado dos alpinistas naquela cordilheira: “Não deixes mais que pegadas, e não tires mais que fotografias”. Durante as subidas íngremes e distintas, os dois amigos encontrariam outros alpinistas em campos intermédios, que lhes ofereceriam chá, água e as inevitáveis Coca Colas, como prevê a ética das altas e inóspitas serras e, entre os glaciares, encontrariam paisagens brancas de uma beleza impressionante, talvez mesmo irreais. Tudo ali era imprevisível, fascinante e perigoso. Tristan e Vardan eram amigos, mas também eram há muito rivais do tipo olímpico, gostavam de se enfrentar, superarem-se a si, e superarem o outro. Mas a experiência era também a de testar os seus limites: Tristan, o da sua resistência física e psicológica. E o arqueólogo, habituado aos fundos marítimos, o de conhecer agora o lado simétrico, o dos picos do mundo. O objetivo era saber se conseguiriam chegar ao cume, mas a ideia podia ser perigosa, e de riscos que nem sequer imaginavam. Quanto mais tempo passassem naquele território gelado e de ar rarefeito, menos forças teriam, e cada vez precisariam mais delas.
 
Começaram na base, longe um do outro, o grau de dificuldade para ambos foi avaliado como equivalente pelos dois sherpas, e começaram a subida com os guias a suportarem boa parte da logística. Estes eram homens preparados, magros e ossudos, como a montanha, toda a vida ali permaneceram, e desde garotos se tinham habituado a subir as impressionantes escarpas de neves eternas e a respirar aquele ar frio, seco e raro. Ao chegar a cerca de seis mil metros de altitude, e muito distantes um do outro, ambos os guias pararam e pediram a cada companheiro para fazer o mesmo. A partir dali, era necessário pedirem autorização aos espíritos da Montanha para entrarem nos seus territórios. Só assim, depois de uma oração e algum recolhimento, sentiriam que podiam continuar sem profanar terras que já não eram para o homem. Tristan e Vardan fizeram o mesmo, tinham a sua cultura, o seu modo de ver o mundo, mas compreenderam intuitivamente que ali, era aquela a ordem natural das coisas, talvez a ordem da própria sobrevivência. Era a partir daí que a Montanha começava a reclamar vidas aos que nela se aventuravam, e os sherpas atribuíam isso aos espíritos que as povoavam. Eram criaturas que por alguma razão ficavam indignadas com a intrusão e, por isso, era preciso apaziguá-las. Há coisas que são universais, e enfrentar a Montanha impunha os mesmos sacrifícios e a mesma ética a todos. Os sherpas chegaram, enfim, com os seus companheiros a novos locais, onde pernoitaram, e a partir daí Tristan e Vardan seguiriam sozinhos, pelas suas sendas, com os seus métodos, as suas forças e as suas convicções. 
 
Deixados os guias e carregadores para trás, cada um entregou-se à fase final da missão, já muito desgastados pelas caminhadas iniciadas há alguns dias. Faltava o mais difícil (o mais difícil é sempre o que falta). 
 
Vardan, o mergulhador, habituado a sobreviver nas depressões oceânicas, entendia que todo o equipamento, toda aquela complexa panóplia tecnológica e logística eram fundamentais. E, se o eram no mar, também o seriam nos cumes gelados. Aqueles sofisticados equipamentos eram como se fizessem parte de si, como os braços, as mãos ou as pernas… Deixar os apetrechos e instrumentos técnicos para trás não fazia parte da sua cultura, até da sua identidade, era como se deixasse de ser quem era. Era como se ficasse amputado… 
 
Tristan, pelo contrário, entendeu largar logo lastro e despojar-se de boa parte das ferramentas, ou por serem pesadas, ou porque não eram essenciais à progressão. Acreditava que mais (equipamentos) conduzia a menos (hipóteses de chegar ao topo). Ouvira falar de bombeiros que sucumbiram em incêndios por não se terem libertado das suas pesadas ferramentas e foram apanhados pelas chamas, quando, se se libertassem delas, teriam escapado à morte. Largar equipamentos que fazem parte da nossa profissão é psicologicamente bastante difícil, talvez por pertencerem à própria identidade.
 
E assim se fizeram os dois, sem livro de instruções nem passadiços, ao resto do caminho, à parte mais dura do trilho. 
Foi Tristan quem chegou primeiro ao cume, em condições desoladoras; a escalada, a altitude, o frio e os escassos alimentos esgotaram-no, e, com a escassez do oxigénio, a sua mente estava tão confusa que só algum tempo depois se apercebeu da missão cumprida, pegando então na bandeira do seu país e desfraldando-a debaixo do nevão intenso que caía. Acabou por perder os sentidos, e valeu-lhe a chegada de Vardan, felizmente pouco tempo depois. Chegou carregado e tão cansado como o psicólogo, mas ainda o pôde reanimar com o pouco oxigénio suplementar que ainda levava, antes de tombar sobre a sua bandeira, e ser agora socorrido, por sua vez, pelo amigo. Teriam agora de vencer a apatia que se apoderara de ambos e descer rapidamente a Montanha. Demorar ali seria a morte lenta para ambos. 
Por vezes, a descida é ainda mais perigosa que a ascensão. E ambos perceberam agora que só a poderiam fazer juntos, com o que sobrara de bolachas e do búfalo de conserva, e a ajuda do hardware. Há lugares que não se fizeram para competições fúteis, e aquelas serranias eram um deles. Valeu-lhes, enfim, os dois guias contratados e outros sherpas que, estranhando a demora, vieram ao seu encontro, respeitando a ética que os unia aos espíritos e ao local. Tristan e Vardan jaziam inanimados debaixo de um sol ténue e sobre a travessa de um glaciar. Haviam querido impor os seus preconceitos à Montanha, mas ali era ela (ou os seus espíritos) quem impunha a lei, e esta exigia equilíbrio, sensatez e o entendimento flexível de cada momento na escalada. Os dois homens, com as suas certezas radicais, transgrediram-na. Mas os sherpas, que a conheciam, ainda puderam salvá-los a tempo.
(0) Comentários
Escrever um Comentário
Nome (*)

Email (*) (não será divulgado)

Website

Comentário

Verificação
Autorizo que este comentário seja publicado



Comentários

PUB
crónicas remando
PUB
CONSULTAS ONLINE
Interessa-se pela política local?
 71%     Sim
 29%     Não
( 407 respostas )
© 2011 Jornal Abarca , todos os direitos reservados | Mapa do site | Quem Somos | Estatuto Editorial | Editora | Ficha Técnica | Desenvolvimento e Design