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20 DEZ 2021
OPINIÃO | "Karmas e Candirus", por José Alexandre
Por Jornal Abarca

Manaus, janeiro. Mal começa o Ano Novo, deixo Washington com 5 graus negativos e aterro aqui, 31 graus na escala do mais. Venho ao chique - confiaram-me um projeto ecológico, o que, na Amazónia, transborda a terrina, não falta assunto. Como não falta, estar em pleno Equador e pino do verão, carapaça de nuvens de cimento, brisas nem as vês, cansa respirar este ar mormaço, quase preciso de guelras. Mesmo que tente salpicar as bordas deste mais mar do que rio, castanho, morno, preguiçoso, gigante, bafo açucarado, enjoativo, visco de cisco. Tudo enorme, sem tela que chegue. Mas no fundo, apenas uma miniatura das infinitas muralhas líquidas, tentáculos de água que se entrelaçam pelo oceano verde de verde, ramarias, carapuças e copas, não há paletes que cheguem. Buritis, Piquiás, Cajás, Castanhas-do-Brasil, Visgueiros, Jenipapos, Mamicas-de-Porca, Ipês-amarelos,nem sei quantas espécies estendem braços e raízes daqui ao Perú, do Atlântico Sul ao Pacífico. Esgota-se-me o perder de vista, o beberricar de serpentares de água e mais água, sob o universo invisível da Sogra Natureza(por aqui,Mãe Natureza é poesia de cachaça, não me lixem). Compensa o passar por este braseado de paradoxo? Talvez. É latitude por onde abri olhos e sentidos, nunca vão esquecer a incógnita de não perceber se é a terra que cerca a água ou o oposto. Mas a Amazónia tinha que ter os seus dramas, de literalmente deixar o corpo nas Urgências.

Como o que acaba de acontecer. Saio preocupado do hospital da Beneficência Portuguesa, espero que o meu amigo “3 Bês” (alcunha que todos lhe dão, por ser Biólogo, Budista e Bondoso) recupere, os estragos e danos são realmente sérios. Apresento-lhes Nakura Abaçaí (Abaçaí= homem sério, respeitado), ascendência nipónico-tupi, casado com Denise, mais lusa que brasileira, pais e avós de Cantanhede. O projeto é giro - experimentar uma eco maternidade de aquacultura de botos, os famosos golfinhos brancos da Amazónia, em vias de extinção. De 2ª a 6ª, trabalho pingado, mas finalmente vai ser fim de semana. Enquanto noutros lugares é normal as famílias apanharem o carro para um piquenique ou dar um passeio, em Manaus é de barco que se desfia o lazer. Juntam-se amigos, cada um na sua lancha rio acima, levam-se ao tiracolo arcas frigoríficas com bebidas e sanduiches, música em CDs, ancoram-se fateixas num dos braços do Amazonas (igapós)e passa-se o dia como marajás, dentro de água. Quando Nakura e Denise me convidam, confessei não estar muito confiante no safari aquático: - E as piranhas?Riram. Pergunta de analfabeto, qualquer manual de zoologia ensina que a piranha só ataca quando há ferida ou sangue na água; fora isso, é bucólica e toda mansinha. Pergunto se as piranhas leram o livro, bom humor não falta. Mas ok, combinado, vou. Ele aproveita para deixar uma mensagem compassivaAcredite que no corpo dos animais, não se deve deixar nem um grão de areia das crueldades e erros dos homens. As piranhas talvez estejama sofrer agora, por não terem merecido a reencarnação que lhes cabia.

Era demais para mim: -Acredita mesmo nisso?Continuou imperturbável: - Em absoluto. Pode estar sossegado- se não atacar nem mexer nas piranhas, elas não lhe fazem mal. Pelo contrário, se as tratar bem, também o tratam como amigo Se bem me fazes, com bem te pago, uma das verdades da compaixão. Fosse como fosse, domingo de madrugada, apanham-me no hotel, ainda que resista, - Não levo creme para mosquitos?Explicam que as águas do rio Negro são alcalinas, ácidas, afastam mosquitames e mosquedos. Posto isto, às 6 e meia, sol a ¼ de pino, já estávamos a umas 20 milhas a noroeste de Manaus, a passar o Encontro das Águas, a confluência do rio Negro e do Solimões, a desenhar enormes bolhas arredondadas que bobeiam a deslizar pela corrente, uma gigantesca tela em 3D. Nenhum mistério: os 2 rios têm densidade e temperaturas diferentes, demoram 10 a 15 quilómetros a formar o Amazonas propriamente dito. E era precisamente ali que os botos andavam à nossa volta, o maior forrobodó, a crocitar numa espécie de gargalhada, entre mergulhos e saltos, Nakura ao leme, mostrou-os com o dedo, realmente parecia um jardim-de-infância, bom sinal. Mais 1 hora e estávamos no Taj Mahal, alcunha da margem esquerda de grande igapó, quase lagoa decorada a preceito - enorme ramaria de jurutis, jacatirões, palmeiras bico-de-pato, cambucazeiros, resvés pelas águas, bandos de araras azuis e amarelas, papagaios, periquitos, e até uma preguiça aborrecida com o nosso banzé. Afuniladas as lanchas no areal, dava pé para miúdos e graúdos, mergulhos em algazarra. Para não dar parte de fraco, entrei naquela água barrenta, valha-me o santo patrono anti piranhas. Curiosa aquela água morna. Batia em murmúrio pelas pernas, tronco e costas, uma espécie de massagem natural, embala o sossego da pele, outra lição de adaptação. Montam tabuleiros entre as bordas das lanchas, estão postas as tábuas das travessas, comidas, bebidas; jogos de cartas, ouvir música, todos dentro de água, tinha o seu ar de hotel do Havaí ou Taiti. Nakura fica satisfeito com a minha surpresa: - Viu o luxo? -Sim senhor, 5 estrelas, 5 estrelas…

Nisto, vejo-o mudar bruscamente de feições. Olha para a água debaixo das pernas, leva as mãos ao interior dos calções, chapinha com toda a força, esmurra, berra descontrolado, máscara contorcida de dor: - Candiru! Candiru! Tumulto geral: - Todo o mundo fora de água já! Tem candiru, candiru! Foi assim que fiquei a saber que o maior e real perigo amazónico não é a piranha, mas sim o Candiru,(também peixe vampiroou peixe-gato).Pequeno, lombricoide, bico torneado, que o torna quase invisível na água, é atraído por réstias, ainda que mínimas, de urina ou sémen; mesmo quando se usa calção ou biquíni não ajustado, penetra pelo ânus, vaginaou uretrapara depositar os ovos. Mal entra, rata, rói, escarafuncha, fura, rasga as paredes dos tecidos e instala-se a alimentar os ovos com o sangue do hóspede. Normalmente a solução é cirurgia. Com a agravante de que, ao sentir a natural resistência do hóspede, o candiru prossegue canais humanos acima, à procura de tecidos e vasos sanguíneos que lhe deem mais suporte. Pânico, Nakura uiva desesperado, a contorcer-se com dores no chão do barco, hemorragia no pénis, Denise atarantada, não há farmácia a bordo para aquele tipo de emergência: - O jeito é voltar já a Manaus!Mas isso eram cerca de 3 horas de viagem, talvez pedir ajuda por rádio? Um dos presentes é operador, é o que se faz. Mas a única lancha médica está a 150 milhas, a assistir a um parto numa aldeia índia e os helicópteros não pousam nas areias movediças dos igapós. Apesar das dores lancinantes, Nakura pede que tentem encontrar ali na mata, a xágua, uma maçã brava, roxa, que esfarelada e aplicada, evita que o candiru avance. Saltamos a galope pelas margens do igapó, bate aqui, bate acolá, vejo a certa altura num arbusto, uma espécie de pequena batata, não propriamente roxa, mais cor de cenoura, será aquilo? Era. O próprio Nakura, com incrível presença de espírito, esmigalha, faz uma espécie de pasta que aplica no pénis. E mostra-me a chave da ignição da lancha. Pede-me que a leve de volta para Manaus, enquanto a Denise e alguns amigos o amparam. Eu?!?, pensei não saber conduzir aquilo. Mas o tempo não era para dúvidas, seja o que Deus quiser. Arranco com a manete ao fundo, quase que caio para trás com o impacto, saem cachões de espuma, os outros barcos acompanham. Receio que as sacudidelas ainda magoem mais o pobre do Nakura, mas faz-me sinal para não abrandar, - Rápido, mais rápido! Vim a saber que se o candiru chega ao bacinete renal, pode ser fatal. Foram séculos naquele chape-chape, chape-chape, ainda que já tivéssemos passado o Encontro das Águas, nunca mais se via o casario de Manaus. Finalmente aparece uma lancha da Marinha, acosta, salta um tenente médico, dá uma injeção de morfina, faz o transbordo com Nakura, sai a tripla velocidade. Só então dou por mim. Meio zonzo, encharcado. Não de água, mas de suor frio. E agora, aqui estou, à porta do hospital, a cirurgia foi muito delicada, horas e horas a abrir e retalhar a uretra, remover o candiru, limpar os tecidos, será longa a recuperação do aparelho urinário. Vai ter que conviver com uma sonda durante a cicatrização. Karmade candiru, candiru de karma, susto a mais. É cerro que passou muito tempo, mas quando lhe ligo ou mando um e-mail. Nakura ainda se lembra: – Será que na outra reencarnação, ataquei ou feri o pobre candiru?Nunca comentei. Budismo, causa ou consequência; prémio ou castigo, com o devido respeito, bato palmas de prece, vénia e passo. Mas aprendi - karma, se existe, é como a gravidade. Ou o vento. Tão naturais e inevitáveis que nos envolvem, sacodem, invisíveis mas presentes. E quanto ao candiru, fica um consolo - pelo que li, quando as piranhas ficam com dentes cheios de sangue de carne arrancada, o candiru entra, fura, rói e desfaz guelras e o resto.

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