Ali na Rua das Musas, no Porto. Só podia ser mesmo ali. Ali nasceu, por ali deambulou nos primeiros passos de uma vida cheia de inspiradoras musas que ora acolhia ora afastava. Zé Gomes, Gomes Ferreira ou José Gomes Ferreira conforme a intimidade dos próximos, verdura ou maturidade da obra, cedo conviveu com os poetas de XIX, seus primeiros inspiradores que dormitavam na biblioteca de seu pai Alexandre Ferreira, figura tutelar, maçon e republicano convicto. Se António Nobre, Antero, Junqueiro, Gomes Leal, mesmo João de Deus foram os seus primeiros companheiros de estante, terá sido o Leonardo Coimbra seu mestre e professor no Liceu Gil Vicente, naquele Liceu onde antes houvera um antigo Convento de azulejos, quem o fez despertar, na idade certa, para a consciência social de Raul Brandão e, sobretudo, para a genialidade solitária de Pascoaes:
“…Eu dei o salto para adulto, a embalar o ‘Sempre’ e as ‘Sombras’ e quase todos os livros do
Poeta Teixeira de Pascoaes. E descobri que havia um não sei quê de fantástico que unia e
separava os homens e as coisas…”(“Liceu”, in Calçada do Sol).
Aos dezoito anos, há mais de um século, numa mescla de emoções tão díspares quanto reveladoras da sua eterna dialéctica interior e em vésperas do desastre da Flandres, vê subir à cena no Theatro Politeama daquela sua emprestada Lisboa, o seu “Idílio Rústico”, Poema Sinfónico inspirado nos “Meus Amores” de Trindade Coelho. Ainda nesse memorável ano de 1918, assume a direcção da revista “Ressurreição” – «mensário para a arte, literatura revista e vida mental» e, como caloiro da Faculdade de Direito de Lisboa, numa cena que nunca esquecerá, é intimado a oferecer um caracol de cabelo a uma então desconhecida, Florbela Espanca. E como se tal não bastasse, publica o seu primeiro livro de poesia “Lírios do Monte”, com capa de Stuart de Carvalhais que, com a ingenuidade de quem nunca vira tal flor, recorreu à florista do bairro para lhe inspirar o traço. Marcante e interminável ano, que começara com uma duvidosa subida ao palco e termina com uma flor que mais tarde renegaria.
Ainda em plena flor da idade e vivendo o turbilhão da época, continua a lutar, a estudar e a escrever. Mergulhado no espírito republicano, integra como voluntário, o batalhão académico que se opõe à intentona monárquica de 1919, após o assassinato de Sidónio. Forma-se em Direito e é cônsul na Noruega por alguns anos. Colabora na Seara Nova, nunca se assumindo como seareiro. Na Presença, não sendo presencista. Desalinhado, não alinha com os modernistas do Orpheu. Nem Pessoa, nem Sá-Carneiro, nem Almada. Prefere, com um cheirinho de neo-realismo, Lopes-Graça, Rodrigues Miguéis, Carlos de Oliveira, ou Cochofel.
José Gomes Ferreira foi um poeta dos mil sonhos, inspirado e militante. Um cronista balanceando entre o individualismo e uma nem sempre compreendida partilha de sentimentos. Um contista admirável. Do Inverno na Dinamarca ou da solidão em Lisboa. Da boémia e da poesia, dos pequenos e dos fracos. E muitos “João Sem Medo”.
Depois, já como presidente da Associação Portuguesa de Escritores recebe as novas de Abril de 74 e combina então com os seus pares que, no 1.º de Maio, os escritores se devem reunir perto da Estátua de António José de Almeida. Aos 85 anos, longe das musas, cumprida a missão, de cabelo já branco e revolto, partiu. Passa agora mais um ano.
“… E obrigam-me a viver até à Morte!
Pois não era mais humano,
Morrer por um bocadinho
De vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?...”
(excerto de “viver sempre também cansa!”, de José Gomes Ferreira – “presença”, fôlha de arte e crítica, julho-outubro,1931)