Sábado de dezembro solarengo (o mais quente de há 25 anos, ouvi), almoço na costa com esplanada a metros do mar e com a paisagem sempre deslumbrante e fascinante do nosso Atlântico revolto, mas, naquela tarde, pouco, após um breve passeio-fuga à loucura do dia a dia.
Entre a entrada e a cataplana, surge um vendedor ambulante com um artefacto em madeira que é um objeto talhado à mão de modo que possa ser ou um quadro ou uma cesta, de certeza que já viu por aí. Apesar da ideia ser interessante, o objeto algo exótico e ter vontade de ajudar, nada a fazer. Lamentavelmente, já tenho um parecido adquirido numa situação idêntica no nosso sul e vindo também de África. Este viria do Senegal. Proposta recusada, com pena de ambos, do vendedor por não alcançar a venda desejada e necessária, da minha parte por não contribuir. Na minha mente, passou a ideia, entre risos, de iniciar uma coleção… mantivemos o contacto ocular, não o ia deixar ir embora. Na minha cabeça ecoavam as palavras sempre presentes, em situações destas, de Frei Fernando Ventura “Não se pode tirar a fome do mundo, mas podemos tirar alguém do mundo da fome”. Disso não se trataria, mas, pelo menos para uma refeição poderia ajudar e era hora de almoço. Se o sol, quando nasce, é para todos, acredito que o básico também o deveria ser.
Eis que, para meu gáudio e da minha pequena grande companheira, que é a minha filha, leitora da minha alma e com quem já tenho frequentemente sessões espontâneas de telepatia, surge um novo objeto. Desta vez, também em madeira talhada, duas mãos abertas como se fossem à fonte fazer concha para recolher água ou se estendessem em súplica. Claro que perante nova hipótese não recusaria o negócio. Feito, pensei. Contudo, regateei com serenidade perante a perplexidade estampada no rosto da minha filha. “Se fizer os 20 euros, temos negócio”. Os olhos escuros do outro lado do varandim da esplanada, com o reflexo do mar por trás, brilharam mais que o sol lindo nas águas cristalinas. “Sim, sim, claro, feito!” – respondeu o jovem com sotaque marcado. Na minha mente, ainda um terceiro pensamento cruzado. O filme “Sinais”, que recomendo vivamente, e a recordação do sonho sibilino que tivera nessa madrugada de alguém a estender as mãos. Coincidências?
Paguei o que ele pedira de início e disse-lhe que o objeto de artesanato e a sua educação e simpatia valiam o preço pedido inicialmente.
Então, porquê o regatear? Continuava a dúvida a dançar no rosto amado da filha. Só para ver a reação do jovem. Mostrou ser educado e com a sua postura provou necessitar do dinheiro. “Mas, mãe, tu gostas mesmo do que compraste ou foi só para ajudar?”. “Gosto, mas foi para ajudar. Numa loja não o compraria e aqui estava disposta a eventualmente levar até o primeiro objeto.” Rimos todos. Podem até dizer-me que é ilegal esta venda ambulante e que o próprio indivíduo pode ser ilegal. Palavras… letras no papel, leis. Na Itália, não sei se ainda presentemente, aquando do início das migrações por mar dos refugiados, o parlamento aprovou uma lei que castigava criminalmente, inclusive com apreensão da própria embarcação, a todo o que socorresse clandestinos. Dizia um pescador já idoso “Há uma lei mais velha e primeira de todos os marinheiros: nunca deixar de salvar alguém quando se está no mar.” Humanidade é o que é preciso. Agora e sempre. Em tempos de histerias xenófobas e de ideologias políticas da extrema-liberal que apregoam que só deve comer quem para ele consegue ganhar e que só deve ter cuidados de saúde quem os conseguir pagar. Vivemos, cada vez mais, numa democracia que se assemelha gradualmente a uma plutocracia, contudo, é pelas ações que se é verdadeiramente e é pelo exemplo que se educa.
Que sorte! Com a aquisição de um simples objeto, consegui ajudar alguém, dar uma lição pelo exemplo e ainda trouxe um elemento decorativo para o lar.
Ajude o próximo. E nem sequer é porque um dia pode estar no lugar dele, o que é bem possível, nada é cem por cento garantido, seguro, fiável e adquirido. Ajude qualquer um, porque é um ser humano. Ajude, porque é um ser vivo. Ajude, porque sim. Talvez gota a gota, grão a grão, o mundo venha a ser um pouco melhor. Aja!