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06 JUN 2022
PERFIL | Manuela de Azevedo, "uma jornalista igual aos outros"
Por Jornal Abarca

No mês em que sempre se recorda o génio de Luís de Camões, é em Constância que mora o legado que melhor honra o poeta: a Casa-Memória de Camões. Manuela de Azevedo foi uma das fundadoras, mas muito mais do que isso.

A lenda de que Luís Vaz de Camões, cuja morte é evocada no feriado de 10 de Junho, terá vivido em Constância perdura no tempo. A história conta que terá cumprido pena num edifício à beira-Tejo e ganhou dimensão, muito pelo contributo do Dr. Adriano Burguete, mesmo não existindo nenhuma prova documental sobre a passagem do escritor pela terra.

A Herança
Fundamental no processo foi, também, Manuela de Azevedo que dedicou praticamente até à sua morte, em 2017, muitas horas de trabalho à causa. O destino da antiga jornalista cruza-se já tarde com o de Constância, pois é em 1977 que ajuda a fundar a Associação Casa-Memória de Camões. Na altura tinha 66 anos, ela que viria a falecer com 105 anos, praticamente quatro décadas após iniciar esta ligação. Foi presidente da associação até que as forças o permitiram, e daí até à sua morte foi reconhecida como presidente honorária. Manuela de Azevedo era um nome respeitado, o que foi fundamental para, através dos seus contactos e influências, angariar três bens patrimoniais para Constância.

O primeiro foi a icónica escultura de Camões, da autoria do mestre Lobo Henriques, que se tornou um símbolo de Constância: “Não há ninguém que visite Constância e que não se sente junto à estátua para tirar uma fotografia”, disse António Matias Coelho, historiador e antigo presidente da Associação, por ocasião da exposição dos 130 anos da CAIMA. Também o Jardim-Horto de Camões, criado pelo arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles, torna-se o pulmão de Constância graças ao papel da jornalista. Mais do que um jardim, com toda a sua ornamentação e exuberância, este pedaço de terra é um modo criativo de homenagear o poeta, com referências às plantas que refere na sua obra, com destaque para “Os Lusíadas”. Por último, mas não menos importante, o próprio edifício que serve de sede para a associação. O que sobrava do antigo espaço estava num estado de avançada degradação, afectado pelo ciclone de 1941, e assim optou-se pela construção no mesmo local de um edifício novo, de cinco pisos, em que num deles se tenta preservar a casa quinhentista onde Camões terá sido desterrado no século XVI.

 

A Mulher
Manuela Saraiva de Azevedo nasceu a 31 de Agosto de 1911 em Lisboa ficando na história, desde logo, por ter sido a primeira mulher a ter carteira profissional de jornalista em Portugal. Estudou em Viseu e o interesse pelo jornalismo surgiu porque o pai era correspondente do jornal O Século.

Trabalhou em reconhecidas publicações como o jornal República, o Diário de Lisboa ou o Diário de Notícias – de onde chegou a ser saneada durante o período em que José Saramago foi director. Quando faleceu, em 2017, era a mais antiga repórter do mundo, embora estivesse reformada desde 1985. Uma das histórias mais incríveis da sua vida foi a forma como conseguiu chegar à fala com o antigo rei de Itália Humberto I, que estava exilado em Lisboa. Corria o ano de 1946, e Manuela de Azevedo ousou aproximar-se do ex-rei fazendo-se passar por criada, conseguindo um trabalho que seria publicado no Diário de Lisboa e haveria de correr o mundo.

No seu currículo constam também os riscos do lápis azul da censura. Além de ter escrito uma peça de teatro proibida pelo Estado Novo, a censura actuou também na publicação de um artigo, em 1935, em que defendia a eutanásia, algo inusitado há praticamente um século. O seu primeiro livro, “Claridade,” escrito em 1935, teve prefácio de Aquilino Ribeiro, ligado a um grupo de intelectuais contra o Estado Novo. A veia anti-fascista de Manuela de Azevedo vincou-se de forma clara: integrou a primeira direcção, em Julho de 1956, da Sociedade Portuguesa de Escritores Democratas fazendo parte do grupo de escritores democratas e, em 1972, pertenceu à Comissão Nacional pela Liberdade de Expressão.

Em 2013, numa entrevista à Notícias Magazine, resumiu numa frase a mulher de ruptura que sempre foi: “Não sei se mereço todo este espaço. Fui uma jornalista igual às outras. Ou melhor, aos outros, porque fui a primeira. Fui uma jornalista igual aos outros. Gosto desta frase”.

Viria a falecer a 10 de Fevereiro de 2017, no Hospital de São José, em Lisboa. Na altura, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, lembrou uma mulher com “uma vida longa e enriquecedora” que “enfrentou a censura e o preconceito” e que “cumpriu nas Letras o seu destino e no Jornalismo a sua missão”. Manuela de Azevedo deixou a sua marca na história, e dessa história fará sempre parte Constância, a vila-poema.

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