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20 JUN 2022
OPINIÃO | "O (in)discreto Perfume da Gafe", por José Alexandre
Por Jornal Abarca

Tudo começou com a D. Maria Amélia. Amiga da minha mãe de longa data, só com 40 e poucos conseguiu engravidar, graças à coroada pertinácia do marido, um coronel de cavalaria, ramo militar mais ou menos apropriado (honni soit, etc., adiante). Aleluia, assim nasce o Carlinhos. Um delicioso“putti”, menino obra-prima – o mais esperto, inteligente, sossegado, carinhoso,obediente, ternurento, sensível, um primor de criança na lista embevecida da D. Maria Amélia que esgotaria a memória de um bom computador (se os houvesse na época). Lembro-me bem desta crónica, porque me mortificaram as vezes que fui chaperon da minha mãe quando visitava a amiga e o seu rebento (tinha os meus 14 ou 15 anos e o ai-jesus, uns 4 ou 5). Eram sobretudo excruciantes,as festas de aniversário do Carlinhos a que meio mundo alfacinha era intimado (perdão, queria dizer “convidado”) a comparecer. Enchiam-se as salas e os ouvidos do palrar de 30 e tal vozes da nossa (in)discreta burguesia, nem interessa tanto o que se diz e quem o diz, mas mais quem vê e é visto. Exceto claro, o palco central ocupado pela D. Maria Amélia com as novidades mais que sabidas, que esgotavam quantos INHOS houvessem - o filho tinha a melhor roupinha, os melhores sapatinhos, as melhores cuecas e peúguinhas de puro algodão; deliciava-se com sopinhas de alho francês; pequeno-almoço de leitinho com mel, gemadinhas com açúcar; almoço de bifinhos de vitela, salmonetes grelhadinhos com espargos, suminhos de laranja, arrozinho doce ou leite-creme, tudo do melhorzinho, benza-o Deus. A minha mãe e as senhoras presentes ouviam sempre o historial com caridosa e cristã paciência enquanto não se sopravam as velas. Até que, ó céus, ó sibilar do cruel destino, uma desgraça se abate sobre a plateia. Talvez mesmo “A” desgraça. Histórica, fabulosa, única, inesquecível. Uma senhora pergunta quem é o médico que cuida do Carlinhos. A D. Maria Amélia sorri com ar condescendente, como quem já está à espera da pergunta:

– Nisso estou descansada, graças a Deus. O meu filho é visto todos os meses, dos pés à cabeça, pelo Dr. Fulanito de Tal, o melhor pederasta de Lisboa”.

Cai um silêncio roxo, rosa-shocking, de chumbo. Só dei por ele, porque reparei como todos mordiam os lábios, a olhar para o teto, para os lados, para a carpete; a um milésimo de microssegundo de estourar uma gargalhada gongórica. Não percebi, confesso. O meu aprendizado de português ainda não tinha chegado às nuvens de palavras tão caras, sabia lá o que era aquilo? Ou teria dito “PÉDE e ARRÁSTA”?“Pedia” o quê? A boa da minha mãe acudiu: - Ó Maria Amélia queres talvez dizer “PEDIATRA”?Mas ela não ia em cantigas, muito menos em correções:

– Não, nunca! O meu Carlinhos não é visto por nenhum farmacêutico ou boticário, era o que faltava! O Dr. Fulanito de Tal é o melhor pederasta de Lisboa. Senão mesmo de Portugal!”

Contas feitas, dali não saiu, dali ninguém a tirou. E o coronel, calado que nem um rato arrasado de vergonha, tive pena dele. Levantar-se daquele senhor tombo de cavalo, só na privacidade de cortinados conjugais, não ali, em hasta pública. Desviou-se o tema, não preciso dizer que se comeu o bolo a correr, todos desfizeram a festa, pretextaram um motivo para sair e rir à vontade lá fora. E rápido, apanhar um telefone, contar ao resto de Lisboa o pediátrico percalço. Voltámos a casa e fui a correr, abrir o Dicionário Cândido de Figueiredo. E aí fiquei a saber a telúrica diferença entre Pediatrae Pederasta.Resultado? Não me lembro de mais nenhum aniversário do Carlinhos. Mas admito que a mãe dele foi objeto de risota chasquiada e lendária – quem muito teima, a língua queima, como melhor disse Aquilino.

Mas falávamos então de gafes? Para princípio de conversa, a própria Bíblia as comete. Sejamos feministas - a pobre da Eva, ficou com eterna má fama, vítima de simples erro de identificação. Um mero lapso, afinal havia ali tantas árvores no jardim celeste, até um botânico se podia enganar, não? Está bem, devia ter pensado duas vezes e não estender logo a maçã ao Adão. Mas é bem claro que ela estava a pensar ser apenas uma pera, romã, anona, manga, outra fruta qualquer. Tanto manancial ao lado do tronco da árvore era caso para tanto escândalo? Dizem que quem é simples e feliz por natureza, aceita uma gafe com bom humor e até se diverte. Não seria o caso de condescender com a Eva? Somos uns estranhos mamíferos – tanto barafuste por uma maçã e olhem para Cristóvão Colombo: até hoje glorificado, lambuzado de fama, com direito a feriado nos States e tudo. E afinal descobriu a Índia? Ou não fez uma senhora gaffe de uns bons milhares de quilómetros? Onde ele queria chegar, não fica por acaso do outro lado do globo terreste?

Mas há mais - a gafe é uma bivalve vertiginosa. Dobra-se em duas, quando se tenta deitar um remendo, ainda é pior. Será talvez um clássico mas fui testemunha – rebobino, Bruxelas, anos 80, homenagem a um colega que se vai reformar. A meu lado, Jean Philippe, um amigo parisiense, logo de língua afiada. Fomos convidados, conhecemos quem convidou mas não a tanta gente. Vozear de magotes em pé, barreira de copos na mão, ele comenta comigo e com um senhor ao nosso lado; Já repararam naquela mulher, ali ao lado esquerdo? Que pena, até veste bem, ainda é nova mas tem cá uma desgraça de corpo, quem vai dormir com aquilo?E o nosso vizinho responde com voz corrosiva: “Meu caro senhor, não me queixo. É a minha mulher!”Jean Philippe desdobra-se aflito, feito enguia elétrica: Por amor de Deus, não me refiro a essa senhora! Falo da que está ao lado.Zero de zero de remendos, o glacial vizinho fulmina e afasta-se: “Ah, essa? É a minha irmã!”.Ou seja, se sabemos que a gafe é irreversível, por que se tenta remendá-la e afundar ainda mais?

Fecho a cortina, a lembrar que há gafes e GAFES. Tão chifrudas que saltam a fronteira para o drama puro e simples - vamos a 27 de Junho de 1950? ONU, o Conselho de Segurança discute a invasão da Coreia do Sul pela Coreia do Norte. Faz-se o habitual e inútil apelo a um cessar-fogo, que a Coreia do Norte retire as forças armadas para o paralelo 38. Eque os países membros “forneçam assistência à Coreia do Sul necessária para repelir o ataque e restaurar a paz na região” – a famosaResolução 83. É aprovada por 7 votos a 1 (voto contra da então Jugoslávia), com o detalhe insólito da cadeira da URSS, precisamente um dos membros permanentes com poder de veto, estar vazia e ausente o seu representante. Esqueceu-se? Adoeceu? Estava indisposto? Manobra de bastidores? Conte-se o que se quiser, assim começa a Guerra da Coreia que só termina a 27 de julho de 1953. Pelo que sei, um total aproximado de 900 mil baixas no global, cerca de 2.5 milhões de civis mortos e feridos. A geopolítica mudou, como muita outra coisa mudou desde então, é verdade.

Mas aquela cadeira vazia, não se esquece.

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