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23 AGO 2022
OPINIÃO | "As Malas do Tio José", por Maria João Carvalho
Por Jornal Abarca

Era um homem muito comprido, um bocadinho mais que o meu avó, seu irmão, bem humorado no sotaque engraçado de quase cinquenta anos de convivência na cidade de Santos, vestido de branco porque estava de luto infinito pela mulher. Essa circunstância era, aliás, a razão da sua vinda depois de tantos anos sem visitar a família: a tia jurara que não voltaria a Portugal. E ele lamentava não ter voltado a ver a mãe, não conhecer os sobrinhos. Instalou-se num hotel nos Restauradores, possibilitando-lhe frequentar o Parque Mayer, os teatros, os restaurantes da Baixa onde matava a saudade dos paladares da juventude. Mas enviou para nossa casa duas malas de viagem, em couro preto com cintas de madeira, três fechaduras e dum tamanho que obrigou a desarrumar os móveis da sala de jantar, mesmo assim não evitando que toda a gente tropeçasse nos malões. A mãe ficou a olhar para aquele desconchavo, fez o trejeito habitual ante uma contrariedade, mas recusou o molho das chaves: "o tio despois vem cá e abre os malões" "você, minha sobrinha tem de me ajudar com essas coisas". Ficaram os malões, eu saltava por cima e quando pulava as malas ressoavam a oco. Mas eu tinha estado doente, dessa vez foi sarampo, e a minha avó que iria para a Ribeira com o irmão, escreveu à tia que lá vivia pedindo a sua anuência em me receber. A tia respondeu na volta do correio que ia lá ter o mano, "que, como a mana sabe, é muito esquisito e já chegou a baixela de porcelana branca (que mais tarde darei à Suzete, eu nunca gostei de loiça branca), e como vê não posso cá ter a garota. Não quero tuberculosos na minha casa!” A avó ficou fula. E a minha mãe, conhecendo a carinhosa solidariedade familiar, só abriria as malas na presença do tio.

Meu pai fez de cicerone nas voltas que o tio achava inadiáveis e contou que ele comprava montes de roupa branca. Encomendara não sei quantos fatos completos em linho, camisas de seda, múltiplas peças em algodão de Egipto, Tudo branco. Até comprara no Braz e Braz uma baixela de loiça branca que enviara directamente para a Ribeira.

Um dos locais predilectos era a Casa das Iscas, aquela em que os talheres estavam presos com correntes aos bancos, e onde deixava gorjetas obscenas de quinhentos escudos.

Nesse ano o tio comprou fardamentos novos para a Banda de Música, fez obras na capela e promoveu as festas anuais.

Foi visitar o meu avô, pela altura dos meus anos, quando me deu uma caixinha de madeira leve cheia de bananas secas.

Num dia qualquer o pai chegou com a notícia de que o tio vinha no dia seguinte para se abrirem as malas.

Fomos a correr falar com Cristina, nossa lavadeira, antevendo uma carga de roupa para barrela e a minha mãe a calcular ter de passar a ferro aquilo tudo.

O tio José, sempre muito alegre, propôs levar-me com ele. Sim, Só tinha netos, queriam uma menina e eu ia ser feliz. A minha mãe, já indisposta com os malões, disse-lhe um não de tal forma que o tio não repetiu a brincadeira.

Mal sabia a minha mãe que os malões, como eu anunciara depois de saltos malucos por cima deles, estavam vazios.

"Mas...o tio não tem nada nas malas..." A roupa suja?" Não era roupa suja o que trazia?"

"Minha sobrinha, você não sabe que a roupa que usei durante a viagem estava imprestável. Deitei ao mar"

 

Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

Cecìlia Meireles (1901 -1964)

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