Um filme de 2021, Ouistreham, do francês Emmanuel Carrère, coloca um problema político interessante, apesar de este acabar por ficar ocultado sob uma questão moral. Em linhas gerais, trata-se da história de Marianne Winckler, uma escritora, que decide escrever sobre as pessoas que vivem de trabalhos precários, no caso, os serviços de limpeza. Disfarça-se de trabalhadora de higiene e passa a trabalhar na limpeza de um ferryboat que faz a ligação entre França e Inglaterra. Ela não só acompanha a sorte desses trabalhadores, como a vive na sua plenitude. Faz, inclusive, amizade com duas dessas trabalhadoras. O problema moral diz respeito ao facto dessas amigas se sentirem traídas ao descobrirem quem ela é. Não é, porém, a moral que me interessa.
O filme mostra a vida de pessoas que são, para muitos de nós, completamente invisíveis. Sob a crosta de comodidade na qual decorre parte significativa da existência escondem-se autênticos exércitos constituídos por pessoas que vivem muito longe dos níveis de comodidade das classes médias. A sua característica fundamental é a invisibilidade, mesmo quando estão perante os outros, estes não as vêem A esta invisibilidade corresponde um trabalho duríssimo. Os ritmos da limpeza de quartos, casas de banho, etc. são elevadíssimos e a penalização para atrasos pode ser drástica, o despedimento. Toda esta gente – e no filme os trabalhadores são quase todos franceses de origem, digamos assim, embora também existam imigrantes ou descendentes destes – vive vidas sem sentido, destituídas de qualquer fantasia, a não ser a de poder abandonar aquele tipo de existência. Onde está o problema político?
Desde o século XIX até ao último quartel do século XX os trabalhadores reconheciam-se em determinados partidos políticos, os partidos sociais-democratas e os partidos comunistas, e possuíam, mais ou menos desenvolvida, aquilo que se denominava consciência de classe. Era esta que os orientava nas suas opções políticas e na própria vida. Ora, todos estes trabalhadores precários estão longe de possuírem uma consciência de classe e os velhos partidos operários implodiram ou abandonaram as causas originais. Estas pessoas invisíveis, como o filme mostra, têm sentimento da sua situação, mas este nem sequer é um sentimento de classe, mas de revolta contra o mundo que os deixa ali. São uma parte importante dos votos na extrema-direita e, se têm um sentimento político, é o de implodir o sistema democrático e liberal. O filme é francês, mas poderia ser realizado em Portugal ou em muitos países da União Europeia.