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20 SET 2022
OPINIÃO | "Make Believe – Em Tornes, Por Cima do Arco-Íris,
Onde nem o Evaristo Tem Cá Disto", por José Alexandre
Por Jornal Abarca

Foi num domingo destes. Não aguentei mais, proclamei auto independência. Congelei telejornais, noticiários e profecias de carnaval apocalíptico mas em luto fechado por tantas crianças assassinadas por Putin; mergulhei em formol acelerado o político, racial e socialmente correto; fiz os impossíveis por esquecer covids, monkeypox e hospitais em bancarrota; anotei aeroportos a abarrotar e pirâmides de malas perdidas; diverti-me com a proposta parlamentar de se criar um SNS para cães, gatos, cabritagem e lombrigas. Como consegui, a duras penas, controlar a abissal vontade de empacotar para norte de Novosibirsk, capital da Sibéria, quantos pirómanos sejam filhos, netos e bisnetos de trabalhadoras sexuais em regime de puro biscate. Em resumo, saltei o rasgar de sedas do bolero de Ravel que me encharcava o vício. Frieza ártica? Talvez. Só sei que reabri as portas ao Make Believe. O que por meados de 1800 começou por ser inofensivo e simples faz-de-conta é uma das colunas básicas do anfiteatro social, cultural e antropológico tão americano e anglo-saxónico como universal. É meteórico, arrasta consigo muita coisa e cada vez mais gente - do clássico antepassado do American Dream, ao espelho baço de barcos de borracha e chalupas que atravessam o brexit com direito a boomerang. O Make Believe começou por ser um portão dourado, aberto de par em par, sem precisar de chave. Dizem as enciclopédias que inclui imaginar, teimar em conceber e convencer ser verdade o que parece não sair da fantasia, do sonhado, do irreal. É tornar possível o impossível, conseguir a alquimia de crer como S. Tomé, que só pode ser realidade; aguarelar poentes esplendorosos nas Maldivas, a partir das manhãs de tóxico nevoeiro londrino, encontrar refúgios cor-de-rosa nas crateras sulfúricas do Etna; anestesiar os infindáveis abcessos de pensamento que nos embrulham, como ensina a Theory of Mind.

Ou seja, uma forma de vida prática e hereditária de pensar, atuar e reagir, que se idealiza de igual para igual, sem fronteiras, um universo paralelo, talvez ingénuo mas com sabor a mágico. Há quem diga (Piaget, Jung) que terá começado com o Pretend Play– a facilidade com que as crianças no trânsito de 1700 até aos anos 50 do século passado, imitaram adultos, levando muito a sério o papel de mamãs, donas de casa, médicos, enfermeiras, generais, heróis e princesas, mergulharam nas nuvens da magia (fairy tales), onde há sempre um final feliz (Happy End). O que foi antecipado por Charles Perrault(1628-1763) com O Chapeuzinho Vermelho, A Bela Adormecida; seguido pelos irmãos Grimm (Branca de Neve e os 7 Anões, A Bela Adormecida); Christian Andersen(O Soldadinho de Chumbo, A Pequena Sereia);e outros autores que nos deram Alice nos País das Maravilhas, Pinóquio, Bambi, Peter Pane nos nossos dias, a academia oxfordiana de Harry Potter.Mas quem deu um extraordinário impulso ao Make Believe foi Walt Disneyao criar um reino de pura magia, a alquimia sem idades - onde tudo e todos têm por umas horas, fantasias realizadas. Falo da DISNEYLAND, aberta em 1955, vai para 67 anos. Invertem-se os polos, são agora os adultos que vestem bibes e cueiros, entoam o giroflé-flé-flá, voltam à meninice de saborear o entusiasmo dos, carrosséis, músicas, danças e sorrisos. Uma bênção abrir a porta de um tempo reencontrado, ao contrário de Proust;   

  • Num lugar por aí, lá muito por cima do arco-íris / Há uma terra de que uma vez ouvi falar, numa canção de embalar, / Nesse lugar por ai, por cima do arco-íris, os céus são muito azuis / E os sonhos que consegues sonhar, são realidade.”-“O Feiticeiro de Oz”, 1939,canção Somewhere Over the Rainbow;
  • “Deem-me um parque, um polícia e uma rapariga bonita e faço um filme de comédia- Charles Chaplin, Autobiografia, 1954.
  •  “Hoje sou eu quem decide ser feliz ou infeliz. O ontem morreu, o amanhã ainda não chegou. Logo, se só tenho este dia pela frente, vou aproveitá-lo da melhor maneira possível e ser feliz a valer;” –Groucho Marx, Noite na Ópera, 1935;
  •  “Quando era miúdo, disseram-me que qualquer pessoa podia ser o Presidente, Ainda acredito nisso, só não sei o horário e se levo lanche;”filme“Os Melhores Anos da Nossa Vida”, 1946;
  • “Perdoa.me Senhor as minhas piadas e faltas de fé em TI, e eu perdoo-TE a grande piada que me pregaste na vida.”- Robert Frost, “ Cluster of Faith”, 1962.

Se há também que aceitar ser por vezes o Make Believemeio cruel e desapontamento previsível, quando se lhe dá a volta, é 20 estrelas: Eça faz esse prodígio em A Cidade e as Serras. Começa porque se Disney inventou a Disneylândia, Eça inventou Tornes. O palco de sinfonia de verdes alcandorados nas fragas roliças do Douro, a jogar às sombras pelos buxos, parreiras, giestas, boninas e carvalhos. Em suma, um Portugal suado ao socalco mas autêntico, cheio de si mesmo, diametralmente oposto ao cosmos inútil da parafernália de botões a piscar, maquinetas e invenções de Jacinto (o Príncipe",como lhe chama Zé Fernandes),que nem por ser em Paris justificam. A Cidade e as Serras é um exemplo de irónico e monocular Make Believevirado ao avesso. Quando a honestidade mental e o bom humor acontecem entre nós, sou ingénuo ao ponto de acreditar haver mais:  

  • Ler um livro recente que é bom, ainda que escrito por um dos nossos autores, até anima. Mas conseguir repetir a façanha uma semana depois, é digno de Te Deum e missa cantada.”-Ramalho Ortigão, “As Farpas”, 1887;
  • Para acreditar que os sonhos acontecem, basta lembrar 14 de Agosto de 1385.” – Placa na Praça Brites de Almeida, Aljubarrota;
  • ”Ordinariamente os ministros são inteligentes, escrevem bem, discursam com cortesia (…), vão a faustosas inaugurações e são excelentes convivas. Porém, são nulos a resolver crises. Não têm a austeridade, o instinto político ou a experiência que faz um ESTADISTA. É assim que há muito tempo em Portugal são regidos os destinos políticos. Política do acaso, do compadrio, do expediente. País governado ao acaso; por vaidades, interesses; especulação e corrupção; por privilégio e influência de camarilha, será possível conservar a sua independência?”- Eça de Queiroz, em “O Distrito de Évora”, 1867;
  •  “ Ó Evaristo tens cá disto?”- Pátio das Cantigas, 1942;
  • “Sonhar é fácil. Notas de 500 para o pagar é que é difícil”–“Sonhar é Fácil”,1951.

 

Resumo da minha miopia - o Make Believe pode até ser uma receita digna do Guia Michelin desde que aproveite restos escolhidos de alguma boa-fé e inocência, doses reforçadas de paciência e cozinhar devagar. Por amor à Arte. Nunca à ciência.

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