Foi num domingo destes. Não aguentei mais, proclamei auto independência. Congelei telejornais, noticiários e profecias de carnaval apocalíptico mas em luto fechado por tantas crianças assassinadas por Putin; mergulhei em formol acelerado o político, racial e socialmente correto; fiz os impossíveis por esquecer covids, monkeypox e hospitais em bancarrota; anotei aeroportos a abarrotar e pirâmides de malas perdidas; diverti-me com a proposta parlamentar de se criar um SNS para cães, gatos, cabritagem e lombrigas. Como consegui, a duras penas, controlar a abissal vontade de empacotar para norte de Novosibirsk, capital da Sibéria, quantos pirómanos sejam filhos, netos e bisnetos de trabalhadoras sexuais em regime de puro biscate. Em resumo, saltei o rasgar de sedas do bolero de Ravel que me encharcava o vício. Frieza ártica? Talvez. Só sei que reabri as portas ao Make Believe. O que por meados de 1800 começou por ser inofensivo e simples faz-de-conta é uma das colunas básicas do anfiteatro social, cultural e antropológico tão americano e anglo-saxónico como universal. É meteórico, arrasta consigo muita coisa e cada vez mais gente - do clássico antepassado do American Dream, ao espelho baço de barcos de borracha e chalupas que atravessam o brexit com direito a boomerang. O Make Believe começou por ser um portão dourado, aberto de par em par, sem precisar de chave. Dizem as enciclopédias que inclui imaginar, teimar em conceber e convencer ser verdade o que parece não sair da fantasia, do sonhado, do irreal. É tornar possível o impossível, conseguir a alquimia de crer como S. Tomé, que só pode ser realidade; aguarelar poentes esplendorosos nas Maldivas, a partir das manhãs de tóxico nevoeiro londrino, encontrar refúgios cor-de-rosa nas crateras sulfúricas do Etna; anestesiar os infindáveis abcessos de pensamento que nos embrulham, como ensina a Theory of Mind.
Ou seja, uma forma de vida prática e hereditária de pensar, atuar e reagir, que se idealiza de igual para igual, sem fronteiras, um universo paralelo, talvez ingénuo mas com sabor a mágico. Há quem diga (Piaget, Jung) que terá começado com o Pretend Play– a facilidade com que as crianças no trânsito de 1700 até aos anos 50 do século passado, imitaram adultos, levando muito a sério o papel de mamãs, donas de casa, médicos, enfermeiras, generais, heróis e princesas, mergulharam nas nuvens da magia (fairy tales), onde há sempre um final feliz (Happy End). O que foi antecipado por Charles Perrault(1628-1763) com O Chapeuzinho Vermelho, A Bela Adormecida; seguido pelos irmãos Grimm (Branca de Neve e os 7 Anões, A Bela Adormecida); Christian Andersen(O Soldadinho de Chumbo, A Pequena Sereia);e outros autores que nos deram Alice nos País das Maravilhas, Pinóquio, Bambi, Peter Pane nos nossos dias, a academia oxfordiana de Harry Potter.Mas quem deu um extraordinário impulso ao Make Believe foi Walt Disneyao criar um reino de pura magia, a alquimia sem idades - onde tudo e todos têm por umas horas, fantasias realizadas. Falo da DISNEYLAND, aberta em 1955, vai para 67 anos. Invertem-se os polos, são agora os adultos que vestem bibes e cueiros, entoam o giroflé-flé-flá, voltam à meninice de saborear o entusiasmo dos, carrosséis, músicas, danças e sorrisos. Uma bênção abrir a porta de um tempo reencontrado, ao contrário de Proust;
Se há também que aceitar ser por vezes o Make Believemeio cruel e desapontamento previsível, quando se lhe dá a volta, é 20 estrelas: Eça faz esse prodígio em A Cidade e as Serras. Começa porque se Disney inventou a Disneylândia, Eça inventou Tornes. O palco de sinfonia de verdes alcandorados nas fragas roliças do Douro, a jogar às sombras pelos buxos, parreiras, giestas, boninas e carvalhos. Em suma, um Portugal suado ao socalco mas autêntico, cheio de si mesmo, diametralmente oposto ao cosmos inútil da parafernália de botões a piscar, maquinetas e invenções de Jacinto (o “Príncipe",como lhe chama Zé Fernandes),que nem por ser em Paris justificam. A Cidade e as Serras é um exemplo de irónico e monocular Make Believevirado ao avesso. Quando a honestidade mental e o bom humor acontecem entre nós, sou ingénuo ao ponto de acreditar haver mais:
Resumo da minha miopia - o Make Believe pode até ser uma receita digna do Guia Michelin desde que aproveite restos escolhidos de alguma boa-fé e inocência, doses reforçadas de paciência e cozinhar devagar. Por amor à Arte. Nunca à ciência.